segunda-feira, 1 de novembro de 2004

Supremo Tribunal de Justiça - 3.ª Secção

Fraude fiscal - Abuso de confiança fiscal - Crime continuado – IVA - Regime de periodicidade trimestral - Insuficiência da matéria de facto

1. O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, conforme prescreve o artº 79º do CPenal.
2. Estando a Arguida, como sujeita passiva de IVA, enquadrada no regime de periodicidade trimestral, a continuação criminosa será constituída por tantas condutas quantos os trimestres por que se prolongou a actividade ilícita.
3. Deste modo, se os factos integram os crimes continuados de fraude e abuso de confiança fiscal na forma continuada, relacionados com aquele imposto, a punição terá de ser feita com referência a maior das verbas do imposto subtraído ou não entregue aos cofres do Estado, calculada por cada trimestre.
4. Não tendo feita essa investigação, antes tendo sido apurado o valor anual do imposto, ocorre insuficiência para a decisão da matéria de facto, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos arts. 410º, nº 1-a) 2 426º, do CPP.
Acórdão de 20.10.07, proc. n.º 1631/04–3, subscrito pelos Ex.mos Conselheiros Sousa Fonte (relator) - Rua Dias - Pires Salpico - Henriques Gaspar

Abuso de confiança – Burla – Infidelidade – Furto - Elementos distintivos
1. Provado que competia ao arguido, além do mais, no exercício das suas funções de caixa da assistente,
- a execução de depósitos efectuados com cheques sacados sobre outras instituições de crédito, elaborando, no final de cada dia, as respectivas listagens;
- tinha que somar os valores depositados, agrupando-os por entidades, após o que elaborava uma listagem, em duplicado;
- de seguida, preenchia um documento de “remessa de valores a cobrar” também em duplicado, com base nos valores movimentados, o qual, acompanhado das referidas listagens e dos cheques era remetido para o serviço de compensação da Central da Assistente, sendo os duplicados daqueles documentos arquivados no estabelecimento local para se proceder à sua contabilização; e que,
- passados alguns dias, a Central comunicava a disponibilidade dos valores cobrados ou devolvia os documentos não compensados, não sendo, no entanto, feita qualquer reconciliação ou conferência entre os valores remetidos pelo estabelecimento local à Central e os disponibilizados por esta àquele;
- tratando-se de depósitos por cheques emitidos sobre a assistente, o controlo desses valores era executado no próprio estabelecimento, sendo as contas bancárias das entidades intervenientes automaticamente movimentadas, quer a débito quer a crédito, pelos valores em causa;
– uma vez que todas essas operações eram efectuadas individualmente por cada um dos caixas, não existindo qualquer tipo de segregação de tarefas ou funções que permitissem, em cada momento, detectar erro ou omissão ocorrida, o arguido decidiu aproveitar tal circunstância para, em prejuízo da assistente obter para si e para sociedades de que era sócio-gerente, elevados benefícios patrimoniais, apropriando-se ilegitimamente de diversas quantias,
- assim, tirando proveito do facto de não ser efectuada qualquer reconciliação ou conferência entre os valores remetidos pelo estabelecimento à Central e os disponibilizados por esta àquele, o arguido, ou familiares ou amigos, a seu pedido, emitiam cheques sacados sobre contas de que eram titulares noutras instituições de crédito, mas que não estavam suficientemente provisionadas para o seu pagamento, apresentando-os na sua caixa para depósito em contas tituladas pelas ditas sociedades, por ele próprio ou por aqueles familiares e amigos;
- o valor desses cheques era imediatamente creditado nessas contas,
- mas não os enviava à Central para compensação, omitindo-os nos documentos de remessa, ou substituindo-os por outros de menor valor, embora os fizesse constar do duplicado que ali ficava, assim evitando o conhecimento por parte dos seus colegas e responsáveis pelo estabelecimento dos valores que não tinham sido efectivamente compensados,
o crime cometido é o de abuso de confiança e não o de burla ou o de infidelidade ou o de furto.
2. Não é o de burla, porque o que a matéria de facto nos diz é que o arguido, aproveitando-se das funções que tinha na Assistente, creditava imediatamente, nas suas contas, importâncias que efectivamente não recebia em depósito, por os cheques, para esse efeito apresentados, não terem provisão, apropriando-se, assim, por via de simples operações contabilísticas da sua competência, de dinheiro da Assistente, de que dispôs em seu proveito.
De resto, para transferir para as suas contas de depósito aquelas importâncias, não necessitou de usar qualquer estratagema enganoso, que, no caso, sempre se revelaria de execução impossível, porquanto, funcionando como comissário da Assistente – e era nessa qualidade que tinha acesso aos valores com que se locupletou –, reunia em si as qualidades de sujeito activo e de sujeito passivo da acção. Burlão e enganado seriam a mesma pessoa física, o que parece repelir liminarmente a ideia de burla.
O expediente da apresentação de cheques sem provisão e a posterior adulteração do documento de “remessa de valores a cobrar” não se mostram causais dos créditos de importância idênticas imediatamente contabilizados a seu favor, pois, repete-se, era a ele mesmo que cabia realizar tal tipo de operações. A finalidade desses artifícios situa-se a jusante da consumação da apropriação, com vista a encobrir o feito.
3. Mas se é de afastar o crime de burla, também não se pode encarar o crime de infidelidade, p. e p. pelo artº 224º do CPenal que, ao contrário do que aqui aconteceu, não pressupõe a intenção de apropriação.
4. De afastar é igualmente o crime de furto, porque o arguido tinha a disponibilidade dos valores que fez seus.
5. A adulteração dos referidos documentos de “remessa de valores e a apropriação das referidas quantias constitui um concurso real de infracções, já que estamos perante duas acções distintas, cada uma delas violando diferentes bens jurídicos, e, ao contrário do alegado pelo arguido, não foi, como acima se referiu, através daquela viciação que ele se apropriou do dinheiro.
Acórdão de 20.10.04, Processo nº 2824/04-3, subscrito pelos Ex.mos Conselheiros Sousa Fonte (relator) - Rua Dias - Antunes Grancho - Henriques Gaspar

Casa da Suplicação (V)

Habeas corpus — prazo da prisão preventiva — suspensão do prazo — despacho do juiz
1 – A suspensão prevista no art.º 216.º, n.º 1, al. a), do CPP, inicia-se no momento aí indicado (quando é ordenada a perícia), independentemente de despacho prévio, embora tenha de haver um despacho, mesmo que posterior, a declarar que o resultado da perícia é determinante para a acusação ou para o despacho de pronúncia ou final.
2 - O despacho do juiz de instrução a declarar a suspensão do prazo da prisão preventiva é obrigatório, mas é meramente declarativo e visa tão só proteger os direitos do arguido. Por isso, embora possa ser posterior ao momento em que é ordenada a perícia, desejavelmente deve ser anterior ao termo do prazo da prisão preventiva delineado no art.º 215.º do CPP.
3 - Mas, se esse despacho for posterior a este último momento (termo do prazo de prisão preventiva sem a ocorrência da suspensão) a prisão não se torna ilegal, pois a perícia existiu ou existe, demorou ou está a demorar o tempo necessário e será, do ponto de vista do juiz do processo, determinante para se poder passar à fase seguinte.
4 - Tal despacho, a declarar a suspensão do prazo de prisão preventiva, quando lavrado para além do prazo da prisão preventiva previsto no art.º 215.º do CPP, não posterga os direitos de defesa, pois estes ainda podem ser exercidos.
5 - Esse atraso configura uma irregularidade processual, sanável oficiosamente ou a requerimento. Contudo, pode vir a constituir em responsabilidade disciplinar ou mesmo penal o juiz, caso um tribunal superior venha a revogar o seu despacho, por falta manifesta de fundamento, e se verifique que o arguido esteve preso preventivamente para além do prazo definido legalmente.
Ac. de 28.10.2004 do STJ, proc. n.º 3856/04-5, Relator: Cons. Santos Carvalho

Recurso perante as relações — impugnação da matéria de facto — modificação da matéria de facto — livre apreciação das provas — oralidade e imediação das provas
1 – Não é hoje defensável que, tendo o recorrente impugnado em recurso determinados pontos da matéria de facto e tendo cumprido as especificações legais com vista à sua modificação, estando a audiência documentada e as respectivas transcrições feitas nos autos, o tribunal da relação possa refugiar-se em generalidades relativas aos princípios da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação das provas, para assim não apreciar efectiva e concretamente se há ou não motivo para alterar os pontos de facto impugnados.
2 - A admitir-se a tese defendida no acórdão recorrido, pôr-se-iam os sujeitos processuais perante este beco sem saída: se não são cumpridas as exigências do art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, a relação não conhece da impugnação da matéria de facto por razões formais, mas se são cumpridas essas exigências legais, a relação também não conhece da impugnação da matéria de facto, pois, por razões agora substanciais, diz-se impotente perante os princípios (assim tornados inultrapassáveis) da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediatividade.
Ac. de 28.10.2004 do STJ, proc. n.º 3503/04-5, Relator: Cons. Santos Carvalho