domingo, 14 de novembro de 2004

Pacto para a Justiça e Contencioso

Artigo de opinião de A. Leones Dantas
Procurador-geral adjunto
no DN de hoje:

1 - Há muito que se tornou evidente a necessidade de um verdadeiro encontro de vontades entre as principais forças políticas que potencie um denominador comum para a área da justiça, pelo que todos esperam que o projectado Pacto para a Justiça seja mesmo o ponto de viragem de alguns dos mais graves problemas que afectam este sector.
Começam já a delinear-se temas que poderão ser incluídos nesse pacto e alguns deles não deixam de causar sérias preocupações.
Se através daquele pacto se procura dar resposta aos mais graves problemas que afectam esta área, não deixa de ser estranho que ali se venham a incluir assuntos que nada têm a ver com a chamada crise da justiça.
Um desses temas é o do Contencioso do Estado.
Há séculos que a defesa dos interesses materiais do Estado nos tribunais (vulgo advocacia do Estado) está em Portugal entregue ao Ministério Público. De facto, já desde a Idade Média que a defesa daqueles interesses está a cargo de uma instituição pública que é a origem do actual Ministério Público.
Foi com as reformas liberais que aquela magistratura veio a assumir as competências mais significativas que hoje tem no universo criminal, mas essas competências acabaram por ser atribuídas a uma instituição preexistente, não tendo justificado a criação de um novo serviço. A solução em vigor tem funcionado razoavelmente e não pode, de boa-fé, dizer-se que não assegure uma boa defesa dos interesses do Estado.
Integra, hoje, uma parte relativamente pequena do serviço global do Ministério Público, por norma acumulada com as outras tarefas que os magistrados asseguram, e é francamente exíguo o número de magistrados que estão afectos exclusivamente a este serviço. A intervenção nesta área apoia-se na dedicação dos magistrados e num controlo relativamente apertado da hierarquia, o que garante a segurança e a qualidade do serviço prestado.
Estão diagnosticadas e previstas no Estatuto do Ministério Público, desde 1998, algumas soluções que poderiam melhorar ainda a qualidade do trabalho levado a cabo, mas que não passaram de letra morta, compreendendo-se agora melhor o porquê desta situação.

2 - Pois, apesar de o Contencioso do Estado em nada ter contribuído para a chamada crise da justiça, e apesar de o interesse público continuar a ser razoavelmente assegurado pelos magistrados do Ministério Público, projecta-se a alteração deste estado de coisas e a atribuição a advogados da responsabilidade por esta intervenção processual, a coberto da alteração das atribuições daquela magistratura
Diz-se que somos o único país da Europa que adopta esta solução e que os magistrados do Ministério Público, em nome da sua autonomia, não podem receber ordens e instruções do Estado e das outras entidades públicas para defender os interesses destes nos tribunais!...
Quanto à originalidade da solução portuguesa, que é um facto, o que se deve discutir é se ela funciona ou não, e, caso não funcione, devem averiguar-se as causas e procurar alternativas.
No que se refere à aparente contradição entre a autonomia do Ministério Público e a natureza de direito privado dos interesses do Estado, importa que se diga que, sendo os interesses de direito privado, a disponibilidade dos mesmos cabe à Administração, não podendo os magistrados substituir-se àquela nas opções que entenda tomar.
O que o Ministério Público não pode é dar prossecução a pretensões ilegais da administração, aliás, tal como os advogados, pelo que nunca aquela magistratura teria o dever de dar apoio a pretensões que contrariem a lei e a consciência jurídica dos magistrados. Não existe, pois, qualquer contradição entre a qualidade de magistrado e a natureza privada e consequentemente disponível dos interesses em causa. É, aliás, nesta base, sem atropelo dos princípios, que as coisas têm funcionado desde 1978 - com a actual legislação orgânica do Ministério Público.
Diz-se ainda que a concentração dos magistrados do Ministério Público na área penal corresponderia a um aumento de quadros naquela que é considerada a área prioritária do serviço desta magistratura.
Tal como acima já se disse, a defesa do Estado não justifica a exclusividade dos magistrados nesta tarefa, uma vez que ela é assumida no âmbito das outras funções prosseguidas. Daí que da alteração projectada não resultem quaisquer economias de meios humanos.

3 - Se o Contencioso do Estado não é um problema no mundo dos problemas da justiça em Portugal, e se a solução actual não representa um encargo, já que as tarefas são assumidas no âmbito das atribuições gerais dos magistrados do Ministério Público, pode perguntar-se quais os interesses que justificam a mudança projectada.
Representa a actual solução uma saída onerosa sob o ponto de vista financeiro e pouco eficaz do ponto do vista de satisfação dos interesses do Estado que justifique a sua alteração?
É sabido que o Contencioso do Estado, aqui incluindo o apoio jurídico à Administração, há muito que é reclamado por certos sectores da advocacia.
Trata-se, de facto, de um mercado apetecível, onde se jogam interesses nem sempre coincidentes. É provável que venha a formar-se consenso entre as principais forças políticas sobre esta reforma, já que são conhecidas as ideias sobre este tema de sectores da oposição.
É legítimo, contudo, que se pergunte se se fizeram já os cálculos dos custos para o País, na época de crise em que vivemos, de mais esta desnecessária alteração, e que se pergunte também, e desde já, quem vai assegurar a transparência do sistema projectado, no que respeita, por exemplo, à selecção de advogados a contratar, aos honorários e até à avaliação do serviço desempenhado.
Estamos perante uma mudança anunciada que só terá razão de ser se se concluir que presentemente o Estado está mal servido neste campo e que a solução actual é mais cara.
Nem todos assim pensarão, sendo estas considerações estritamente pessoais, só responsabilizando, como é obvio, quem as subscreve.
O mundo da justiça anda há muitos anos a ser objecto de experiências que nunca são avaliadas e cujos resultados estão à vista de todos.
Os magistrados do Ministério Público e sobretudo os cidadãos em geral têm o direito de saber as motivações deste projecto.

La Bohème

La Bohème de Paula Rego (pintura) e Giacomo Puccini (música)

Fragmentos da ópera La Bohème (1896):

Che gelida manina (canta Luciano Pavarotti)
O soave fanciulla (canta Luciano Pavarotti)
Marcello finalmente (cantam José Carreras & Teresa Stratas)
Si, mi chiamano Mimi (canta María Callas)