sábado, 20 de novembro de 2004

DAQUI, DE MAPUTO

O PLURALISMO JURÍDICO NA CONSTITUIÇÃO

A nova Constituição da República de Moçambique, aprovada por unanimidade no dia 16 de Novembro, pela Assembleia da República, confere dignidade constitucional ao “pluralismo jurídico”, reconhecendo os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição.

Um acórdão do Tribunal Supremo, de 13 de Maio de 2004

Síntese dos factos:
- F., casado segundo o direito costumeiro, vive na companhia das suas 5 mulheres, 15 filhos e outros dependentes menores, tendo do casamento com uma delas, D., nascido dois filhos;
- D. abandonou o lar e foi viver para a cidade da Beira, fugindo aos constantes maus tratos que F. lhe infligia, tendo levado consigo uma criança do sexo feminino;
- F. exigiu à família de D. que lhe trouxesse de volta a mulher e a filha, tendo o pai daquela ido à Beira, mas a criança faleceu de malária;
- F. exigiu, então, a devolução da sua filha com vida ou, caso contrário, a entrega de uma outra criança do sexo feminino a título de indemnização;
- A controvérsia foi, em 1998, decidida pelas autoridades tradicionais da zona de residência (Vilanculos), no sentido de que o pai de D. deveria entregar ao réu uma criança do sexo feminino para reparar a vida perdida, o que veio a acontecer com Q., menor de 6 anos, que deveria viver como uma mulheres de F. até que tivesse uma criança do sexo feminino, altura em que, considerada expiada a culpa da família de D., ficaria livre para voltar para casa dos pais;
- F. veio a ter relações sexuais com a menor, usando de violência, em Maio de 2001, quando ela tinha 9 anos de idade.

Foi condenado, na 1ª instância, como “autor do crime de violação de menor de 12 anos, p. e p. pelo artº 394º C.Penal”, na pena de 12 anos de prisão maior. O Tribunal Supremo confirmou a condenação, mas alterou a medida da pena aplicada ao arguido, tendo-a fixado em 8 anos de prisão maior.
Sobre os “circunstancialismos sócio-culturais antecedentes e concomitantes da prática do crime”, afirmou o acórdão que “a solução encontrada em sede de direito costumeiro é incompatível com valores e direitos fundamentais da criança consagrados na Constituição da República de Moçambique. Verifica-se, no presente caso, um conflito entre o que dispõe a lei e as práticas decorrentes da aplicação do direito costumeiro. Nele, hão-de prevalecer os ditames da constituição e das normas legais que melhor protegem os direitos e interesses da criança”.
E continua:
“A República de Moçambique é um Estado de Direito Social (artº1º da Constituição) e tem como objectivos fundamentais a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação de bem-estar material e espiritual dos cidadãos (artº 6º.c), a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei (artº 6º b). Por tal razão, as normas e práticas sócio-culturais que conflituam com tais valores perdem qualquer base de sustentabilidade, mesmo face ao princípio constitucional da afirmação da personalidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-culturais (artº 6º g) da lei fundamental)”.
“A Constituição garante a protecção e educação da criança (artº 56), não podendo esta ser afastada do lar paterno a não ser nos casos permitidos na lei, sempre tendo em vista o melhor interesse da criança”.
“No caso em apreço, Q. foi coagida a abandonar o lar paterno para servir de objecto de reprodução e, sobretudo, a viver num estado de violência e de servidão”.
“A decisão das autoridades tradicionais entra em confronto directo igualmente com as disposições dos artigos 3º da Convenção dos Direitos da Criança e dos artigos 8º, 23º e 24º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”.
“Assim, deve Q. ser devolvida ao lar paterno sem quaisquer condições, devendo o tribunal de 1ª instância e as autoridades administrativas competentes cumprir e fazer cumprir o que aqui se determina”.


Assinam o acórdão os Juízes Conselheiros Luís António Mondlane e José Norberto Carrilho.


Maputo, 20 de Novembro de 2004