domingo, 28 de novembro de 2004

A "notícia" do PÚBLICO e o Supremo Tribunal de Justiça

No número de 27 de Novembro de 2004 do jornal Público, foi publicada por Ana Sá Lopes o seguinte:

«Notícia da Mulher Que Deixava a Comida Esturricar
No dia 10, o Supremo Tribunal de Justiça diminuiu uma pena de um homem que tinha estrangulado a mulher. A primeira instância ditara 14 anos de prisão, mas os sereníssimos do Supremo, consideradas algumas atenuantes, reduziram-na para 11 anos.
A quem tenha escapado a notícia de Maria Fernanda, estrangulada pelo marido a 28 de Maio de 2002, que saiu no PÚBLICO da última quarta-feira, passo a informar: o acórdão refere que "não terão sido alheias" ao crime "as condutas anteriores da vítima, designadamente os levantamentos bancários deixando as contas do casal a zero, a ponto de o arguido ficar sem dinheiro para pagar o almoço", o que pode, segundo os cavalheiros do Supremo, "detonador da raiva que conduziu ao homicídio".
Mas os alucinados juízes do Supremo convocam outras (más) condutas da vítima para justificar que se atenue a pena pelo estrangulamento. Fica a saber-se que em Portugal 2004, é atenuante do crime de homicídio o facto de uma vítima ter "deixado algumas vezes esturricar a comida que confeccionava".
Para além dos desastres na cozinha, a estrangulada "chegou a sair e a chegar a casa de noite; ia tomar café a um estabelecimento de cafetaria e não deu conhecimento ao arguido de uma deslocação". No Estado Novo, as mulheres precisavam de consentimento dos maridos para saírem para fora do país; para os juízes do Supremo na democracia de 2004, é atenuante do crime de homicídio ir ao café ou não avisar o marido de uma saída. Ah, a vítima também "chegou a mostrar a barriga quando se encontrava junto de pessoas amigas e se falava da condição física de cada uma delas", conduta repreensível. E, no entanto, os juízes admitem que os "comportamentos resultantes dos problemas psíquicos da vítima, decorrentes da morte de uma filha do casal".
Foram dados como provados agressões do arguido à vítima - "insultos, murros, estalos e pontapés" - que a suprema judicatura considera irrevelantes para o assunto, reduzindo-as à simplória categoria de "desavenças conjugais" e enuncia que também a vítima, nesta matéria, seria culpada. "Àparte as desavenças conjugais (onde, por regra, não existe apenas um culpado) que conduziram à criminalidade em apreço, o arguido mostra-se socialmente inserido", afirma o acórdão.
O PÚBLICO teve acesso ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça na semana em que se comemorou o dia contra a violência doméstica. Os números alarmantes tornam-se então "socialmente inseridos", para usar a linguagem do Supremo, quando o próprio Supremo Tribunal desvaloriza "desavenças conjugais" e considera conduta atenuante de um homicídio o deixar esturricar a comida. O Supremo é o retrato do país medieval, mas já não retrata o país jurídico: em Portugal, a violência doméstica é um crime público e o acórdão do Supremo viola, evidentemente, o espírito da lei.
Não se pode exterminá-los mas, ao menos, não se pode processá-los? »

Trata-se de um exemplar edificante de como a (certa) imprensa trata os tribunais (neste Caso o Supremo Tribunal de Justiça), ultrapassando todos os limites da irresponsabilidade e da falta de ética.
Começa logo por intitular como “Notícia” um comentário muito pessoal, numa ironia deslocada, salvo para os propósitos da autora.
E não fica por menos do que pedir a morte dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, ou na impossibilidade de o obter, que os mesmos sejam processados…
Tudo a propósito de um recurso num processo de violência doméstica, quando decorria a semana destinada a chamar a atenção para esse mesmo problema social, em que o Supremo Tribunal de Justiça baixou a pena de 14 para 11 anos de prisão.
A colunista coloca o Supremo como «o retrato do país medieval» que «já não retrata o país jurídico».
Mas escapa-lhe completamente que o Supremo Tribunal de Justiça procurou seguramente fazer justiça, o que passa entre nós e em qualquer país civilizado, por tentar apreender os motivos que levaram o arguido a agir, num esforço para melhor apreciar a sua culpa, para depois e tendo em consideração a gravidade do resultado, encontrar a pena mais justa para aquele homem concreto, situado num determinado país real.
Podem os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, que subscreveram aquele acórdão, (entre os quais não me encontro) e que são tratados por "alucinados", ter errado, mas qualquer apreciação critica não se pode ficar, como no caso, por uma atitude preconceituosa, que à margem de qualquer análise dos comandos da lei sobre a determinação da pena e do uso que deles foi feito, se fica por primárias afirmações maniqueístas, integrando a turba ululante de que no Público falava Vasco Pulido Valente.

PSICOLOGIA E JUSTIÇA

Na tarde do dia 02 de Dezembro, no Auditório Agostinho da Silva da Universidade Lusófona, em Lisboa, o tema do debate entre docentes universitários de psicologia, juízes, procuradores e advogados vai ser a Psicologia e a Justiça, num seminário organizado pela área de Psicologia Criminal e do Comportamento Desviante da U.L. e pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, que visa “promover a reflexão, o diálogo e a comunicação de saberes entre os operadores judiciários e os psicólogos da Justiça.”
Com o título “Advogados e Psicólogos: de costas voltadas até quando?”, o seminário tem o seguinte programa:
14h30m – Abertura dos Trabalhos
15h15m – 16h30m – Mesa 1
Novas Gerações de Psicólogos e Advogados: um novo paradigma
16h45m – 18h 00m- Mesa 2
Psicologia e Justiça: o Homem no epicentro do diálogo
18h15m – 19h30m – Mesa 3
Advogados e Psicólogos: aprender a dialogar.

“Ao Direito compete regular as condutas humanas na vida social, sendo a justiça o fim e o valor fundamental da ordem jurídica. A Psicologia é uma ciência que incide igualmente sobre o comportamento humano em sociedade. Estas duas afirmações seriam suficientes para constatar o inevitável relacionamento que entre Direito e Psicologia se terá de estabelecer.
Distintas quanto ao objecto, quanto à área e às premissas de intervenção, quanto aos métodos, direito e psicologia entrelaçam-se porque ambos de debruçam sobre a previsão, a explicação e o controlo do comportamento humano.
Apesar de, a meu ver, conterem algum excesso, são, de todo o modo, elucidativas as afirmações de Diamond, que afirma “pensar que a lei poderia ser caracterizada como uma componente da psicologia, pois se a psicologia é o estudo do comportamento humano, inclui necessariamente a lei enquanto instrumento usado pela sociedade para o controlar”, ou de Crombag, que adianta poder ser a lei considerada “um ramo da psicologia aplicada”.
Cada vez mais a lei procura criar e potenciar mecanismos de prevenção de condutas desviantes e associais, de prevenção do litígio; cada vez mais se procura tratar o litígio de forma mediada; cada dia os litígios assumem maior complexidade social; cada vez mais se procura que a resposta da justiça não seja meramente declarativa ou meramente repressiva, mas sim constitutiva de novos comportamentos, de novas relações humanas e sociais, de novas perspectivas de afirmação dos direitos individuais e sociais. Cada vez mais julgar é compreender.
Do que resulta, também, uma maior exigência quanto aos conhecimentos disponíveis, uma maior exigência de conhecimento e de individualização de cada situação tendo em vista a construção da resposta adequada a cada caso concreto. Ou seja, o melhor conhecimento do comportamento humano e do seu contexto é uma exigência da boa aplicação do direito, da boa administração da justiça.”
(extracto de “Diálogo da Justiça com a Psicologia”, intervenção proferida em Maio de 2004 no Congresso Internacional “Educação, Psicologia e Justiça – Diferentes Olhares sobre o Comportamento Humano”, organizado pelo Centro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra)