quarta-feira, 8 de dezembro de 2004

A Carta Aberta de alguns Juízes ao Ministro da Justiça


RAZÕES DE UMA CARTA ABERTA

Há anos que Juízes e a magistratura em geral não atravessam tempos fáceis, espartilhados entre fenómenos criminais cada vez mais insidiosos, tentaculares, polémicos e constantes ataques dirigidos à sua actividade.

Porém, a situação actual não tem precedentes, é qualitativamente diversa e muito mais perigosa que a do passado.

A impressão é que se quer acertar contas com os Juízes que apenas procuram dar vida à lei que deve ser igual para todos.

Vêm agora exibir com ostentação claras intenções de destruição do que mais positivo se fez, neste país, em matéria de organização de uma magistratura independente, não comprometida com quaisquer grupos de pressão, sejam de que sinal forem. Nenhum relevo, contudo, é dado aos problemas e ineficiências reais da Justiça, que todavia existem e com os quais nos devemos confrontar sem hesitações nem timidez.

Limitamo-nos aos factos advindos da vontade do presente Governo como sempre o fizemos no confronto com os dos Governos precedentes: retenhamos como sempre o retivemos: não temos Governos amigos ou inimigos. O que conta são os actos praticados ou a praticar, o respeito pela actividade e a independência do Poder Judicial.

Infelizmente os actos e os discursos explícitos e implícitos do novo Governo, através, sobretudo, do Ministro da Justiça, são claros e delineadores de um salto de qualidade negativa:

  • Desmantelamento da composição do CSM e criação de um "Conselho único";
  • Novas formas de indigitação dos Presidentes dos Tribunais Superiores;
  • Direcção da escola de formação dos magistrados por quem não é nem nunca foi magistrado;
  • Novas formas de composição e acesso ao Supremo Tribunal de Justiça;
  • Insustentáveis responsabilizações políticas do Poder Judicial.
  • Em suma, tentativa de controlo da independência dos Juízes controlando a sua formação e modificando o esquema organizativo da alta magistratura.
A presente carta aberta, embora dirigida ao Ministro a quem incumbe a responsabilidade política da pasta da Justiça, é uma veemente chamada de atenção a todos os responsáveis políticos daquele Ministério e ao Governo em geral.

É o protesto firme da magistratura judicial que quer continuar a ser independente, não por si, mas na defesa dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.


TEXTO DA CARTA ABERTA AO MINISTRO DA JUSTIÇA

Senhor Ministro
Excelência

A magistratura portuguesa vem perante V. Ex.ª e os cidadãos deste país dizer o seguinte:

1. A Justiça não é propriedade de V. Ex. nem dos grupos político-económicos que possam constituir a base de apoio do Governo.

2. A Justiça existe para e em função da comunidade dos cidadãos. Por isso, constitucionalmente, é exercida em nome do povo e não em nome de qualquer maioria.
Todos os cidadãos são iguais perante a Justiça e todos têm direito, nos termos do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (e lembramos-lhe, Senhor Ministro, que aquela é direito interno português) a um Tribunal independente e imparcial.

3. A independência dos Tribunais (voltamos a lembrar-lhe Senhor Ministro) não é um privilégio dos Juízes é uma exigência do Estado de Direito. Os direitos fundamentais (de todos) não estarão realmente assegurados se não existirem Juízes independentes.

4. Os Juízes não são independentes só porque o Governo, a que o Senhor Ministro pertence, afirma generica e populisticamente que eles o são, sendo certo que todo o seu programa político aponta exactamente em sentido contrário.

5. Estes primeiros meses de acção do Governo em matéria de Justiça confirmam a vontade política de controlo da magistratura.
As constantes acusações feitas ao trabalho dos magistrados, especialmente por aqueles que pretendem ter uma Justiça à sua medida, encontraram eco em V. Ex. fazendo agora parte de uma estratégia global de agressão à magistratura, que se pode começar a descortinar no desenho das reformas anunciadas e nos exemplos paradigmáticos dos actos já praticados.

6. Os tempos, os modos e os conteúdos das acusações, agora politicamente tomadas por boas, fazem parte de uma metodologia de comunicação que visa um elevado número de objectivos:
1º- desacreditar alguns acontecimentos judiciais do passado;
2º- criar um juízo difuso de injustiça para futuras decisões sensíveis, sobretudo as que se prendem com processos "mediáticos" em curso;
3º- reforçar a aura de vítima construída em torno de alguns personagens e de alguns grupos;
4º- tutelar a pretensa impunidade de grupos sócio-político-empresariais;
5º- dar da magistratura uma imagem corporativa, perigosa, mal preparada, na qual não se pode confiar.

7. Para que a magistratura possa estar "bem preparada" e sejam fiáveis as suas decisões entendeu por bem o Senhor Ministro nomear como directora do Centro de Estudos Judiciários" (CEJ) um não magistrado.

8. Com tal nomeação quis o Senhor Ministro várias coisas:
primeiro: representar que os magistrados não estão à altura de dirigir a sua própria formação;
segundo: que a formação não seja pluralista nem voltada para a cultura da independência e da jurisdição, da ética e da deontologia próprias da magistratura (já que estas não podem ser dirigidas por quem as não tem);
terceiro: fazer ver urbi et orbi que os futuros magistrados saberão interpretar e aplicar o direito (sobretudo o penal) como o poder político quer (ou seja, os procedimentos e julgamentos judiciais decorrerão sem grandes sobressaltos e a prisão preventiva aplicar-se-á, apenas, de acordo com as estatísticas).

9. A perversidade da nomeação não está nem na pessoa nomeada nem na sua categoria profissional, está no significado político que ela tem para a independência da magistratura e no resultado que se pretende obter. Os Juízes não são independentes ou o Ministério Público autónomo só porque o Governo o diz. É preciso construir todo um sistema garante da independência e a formação faz parte desse elenco de garantias. Aliás, a técnica encontrada é elementar (qualquer manual de política básica o ensina): quem quer controlar começa pelo controlo da "formação".

10. Para que os Juízes não sejam corporativamente perigosos, o Senhor Ministro (anteriormente dirigente da Ordem dos Advogados, Distrital do Porto) como se o seu Ministério fosse a caixa de ressonância dessa mesma Ordem, defende a criação de um "Conselho único" (composto por Juízes?, Magistrados do Ministério Público? Advogados e outros). A ideia é original. Nem o Governo de Berlusconi se lembrou dela. Não deixa, contudo, de ser doutrinariamente um absurdo.

11. E é um absurdo por duas ordens de razões: em primeiro lugar porque um Conselho que envolva Magistrados Judiciais e do Ministério Público pressupõe que se tenha por assente a interpenetração ou a criação de uma magistratura única (o que está longe de ser politicamente desejável e pacificamente aceite); em segundo lugar porque um Conselho que seja também o órgão de gestão da advocacia é um atentado à liberdade e à independência profissional desta. Cuidem-se os senhores advogados que passarão a estar integrados num órgão de Estado e cuidem-se os cidadãos que deixarão de ter Justiça independente e Advogados livres.

12. Que saibamos Portugal não se rege pela Common Law, onde os juristas formam, em princípio, um corpo único, onde a Justiça é cara e selectiva e onde a separação de poderes não constitui teoria legitimadora de cada uma das funções do Estado.

13. Senhor Ministro, como sabe, há muito que o Conselho da Europa se pronunciou pela independência dos Juízes (Recomendação nº12(R) 94) e pela autonomia do Ministério Público (Recomendação nº19 (R) 2000), criando, posteriormente inúmeros textos sobre o auto governo das magistraturas e a necessidade de criação de estruturas de democratização interna das mesmas.

14. Mas, sejamos lúcidos, o Governo de que V. Ex. é Ministro e a Ordem dos Advogados de que V. Ex. parece ser o executor das ideias, não estão preocupados com os princípios teóricos relativos à independência da magistratura, há muito vertidos, como dissemos, em documentos do Conselho da Europa de que Portugal faz parte e cujas recomendações tem assinado.
O que estão interessados é em controlar os Juízes através da criação de um sistema de gestão e de promoção na carreira potencialmente intimidatório e, como tal, condicionador ou balizador das suas decisões.
O que interessa ao Governo é ter a possibilidade de infiltrar ao nível dos Tribunais superiores "Juízes" da sua escolha directa ou indirecta e ao nível da 1ª instância magistrados dóceis, atentos e veneradores, submissos e obrigados.

15. Por isso esteve V. Ex. interessado no afastamento de magistrados da direcção do CEJ; por isso V. Ex. fala em responsabilidades políticas e jurídicas do poder judicial; por isso V. Ex. defende um Conselho único; por isso V. Ex. defende um novo modelo de presidência dos Tribunais Superiores.

16. Senhor Ministro outros tiveram as mesmas intenções há mais de dez anos. A asserção dos filósofos alemães do século XIX é verdadeira: "a História repete-se sempre, da primeira vez como tragédia, da segunda como farsa.

17. E exactamente porque V. Ex. não está interessado na independência da magistratura nem numa Justiça eficaz ao serviço dos cidadãos é que não ouvimos de V. Ex. nenhuma palavra de apreço ao muito esforço desenvolvido pelos magistrados e outros profissionais da Justiça; e, passados estes meses, ainda não sabemos quais os projectos de reforma verdadeiramente desbloqueadores do sistema.

18. Todos sabemos que V. Ex. não quer, nem tem meios financeiros para efectivar as reformas necessárias à eficácia da acção dos Tribunais.
Mas todos sabemos que V. Ex. quer, porque assim o exigem, determinados grupos de pressão, modificar estruturalmente as magistraturas para melhor exercer, sobre elas, o seu controlo.
Aliás o que se passa com a independência da magistratura já o Governo teve a oportunidade de o demonstrar relativamente à independência da comunicação social.

19. Senhor Ministro a Justiça faz-se com a Magistratura e não contra a Magistratura.
Os Juízes e a sua independência são os suportes do Estado de Direito e os garantes dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Quem está interessado na destruição do Estado de direito e da democracia não somos nós.

Lisboa, .... de Novembro de 2004.
(Seguir-se-ão os nomes dos Juízes que subscreverem esta carta aberta)

"Pela autonomia do Ministério Público"

Por António Barradas Leitão, membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pela Assembleia da República, no Expresso de 4-12-2004:

APÓS o recente episódio das «cassetes roubadas», muitas das atenções da opinião pública viraram-se para o Ministério Público e para o seu papel no sistema de justiça. De cada vez que o dr. Souto de Moura presta declarações à comunicação social, seja em Badajoz ou à porta de casa, logo surge na imprensa uma multiplicidade de opiniões e comentários acerca da «crise da justiça» e da actuação do Ministério Público.
Muitas dessas intervenções constituem meros ataques ressabiados à pessoa do actual procurador-geral mas outras, de âmbito mais geral, acabam por colocar em causa o actual estatuto do Ministério Público e a sua autonomia.
No nosso sistema constitucional o Ministério Público é a entidade que representa o Estado e a quem cabe defender a legalidade democrática e exercer a acção penal. Desde 1978 que o MP é uma entidade autónoma, no sentido em que não depende de qualquer dos órgãos de soberania. E é aqui que reside o cerne da questão: de facto, nem sempre assim foi e há quem entenda que o Ministério Público não devia ser autónomo e que devia depender directamente do governo, como anteriormente acontecia.
No tempo da monarquia, e mesmo durante a monarquia constitucional, o MP dependia do rei ou dos governos deste e, no período da Iª República e do Estado Novo, também dependia directamente do governo. Era o Ministro da Justiça quem nomeava o PGR e os procuradores, que recebiam ordens directas do ministro, mesmo sobre a condução dos processos. O Ministério Público era, assim, uma mera emanação do poder executivo junto dos tribunais, eles próprios muito limitados na sua independência, embora formalmente independentes.
Com o 25 de Abril, toda a organização judiciária sofreu profundas alterações, diminuindo drasticamente a capacidade do poder político em interferir no poder judicial e também no MP. A partir de 1978 deu-se o reconhecimento na lei da autonomia do MP, conceito que foi aprofundado com as sucessivas revisões constitucionais e alterações da respectiva lei orgânica.

Hoje, o Ministério Público é uma entidade constitucionalmente autónoma em relação aos órgãos de soberania – parlamento, governo e tribunais – isto é, não depende de qualquer deles, estando sujeito a diversos mecanismos de fiscalização externa e de auto-regulação, designadamente através do Conselho Superior do MP, do qual fazem parte, além do PGR e de membros eleitos pelos próprios magistrados, também representantes da Assembleia da República e do Ministro da Justiça.
Está instituído, assim, um sistema complexo de auto-regulação da estrutura do MP que, em princípio, impede a sua instrumentalização pelo poder político e lhe garante a necessária liberdade de actuação. Ao mesmo tempo, existe um elevado grau de autonomia interna, que permite que cada magistrado tenha liberdade de actuação, naturalmente dentro dos limites da lei. Embora a estrutura esteja hierarquizada, os magistrados do MP devem obediência à lei e podem recusar-se a cumprir ordens dos superiores hierárquicos se as considerarem ilegais ou contrárias à sua consciência jurídica.
Este duplo sistema de autonomia - externa e interna - destina-se a garantir que a actuação do MP, em cada momento, será sempre pautada por estritos critérios de legalidade e sem sujeição a pressões exteriores, nomeadamente de outros poderes.
O nosso sistema de autonomia do MP é singular em termos europeus, apenas se encontrando em Itália um sistema com um grau de autonomia superior ao nosso. Por outro lado, em Espanha, ou em França, o MP não dispõe da mesma autonomia que o MP português, continuando muito dependente do poder político. Mas, é bom dizê-lo, nestes países as funções do MP também são muito diferentes das do seu congénere português, a começar logo pela direcção dos inquéritos criminais que, em ambos os países, é exercida por juízes de instrução criminal

Em resumo, o sistema de autonomia português faz a síntese entre os sistemas em que o MP é completamente independente, como em Itália, dos sistemas em que esta magistratura depende directamente do poder político, como em França ou na Alemanha. É um sistema equilibrado, que confere aos cidadãos garantias de não interferência do poder político nos processos judiciais, mas que não corta completamente a ligação com este, mantendo permanentemente abertos canais de comunicação com o Parlamento e com o Governo.
A «governamentalização» do MP comportaria elevados riscos, como o da politização da justiça. A garantia de não interferência do poder político nos processos judiciais diminuiria e, a cada caso, criar-se-ia a suspeição de que certos processos poderiam ser iniciados ou arquivados em função dos ventos políticos que no momento soprassem. E esta suspeição seria particularmente grave nos processos que envolvessem gente ligada à política e em caso de crimes graves como, por exemplo, os de corrupção.
Qualquer alteração no sentido de limitar a autonomia de que o MP hoje beneficia, conseguida através de um processo dinâmico de revisão da Constituição e de aperfeiçoamento das leis verificado ao longo dos últimos 30 anos, seria um retrocesso grave em termos de direitos e garantias, dos cidadãos.
É claro que nem tudo vai bem no funcionamento do Ministério Público, mas não é pela via do cerceamento da sua autonomia que se conseguirão obter as melhorias necessárias. A orgânica do MP deve ser melhor adequada às suas funções, os seus quadros e meios devem ser melhor geridos e aproveitados, a sua articulação com as polícias deve ser efectuada noutros moldes e o controlo democrático sobre o seu funcionamento deve ser aprofundado, mas mantendo a autonomia de que hoje goza e que não é um privilégio de qualquer corporação mas apenas e tão só um meio de garantia da existência de um verdadeiro Estado de Direito e de uma melhor justiça para todos os cidadãos.