terça-feira, 31 de maio de 2005

A crise...

Por Francisco Teixeira da Mota, no Público de 27-5-2005

Para além da "crise da justiça" e da crise em geral que vivemos, há as decisões dos tribunais que vale a pena conhecer...
Uma das "estratégias" dos arguidos nos processos-crime é pedir a passagem de certidões das declarações das testemunhas prestadas em julgamento e que os incriminam para procedimento criminal. Intimida as testemunhas que já prestaram declarações e as que ainda não prestaram...
Mas, é preciso que se saiba, como o reafirmou o Supremo Tribunal de Justiça no passado dia 21 de Abril, que as declarações prestadas em juízo, por cidadãos na qualidade de testemunhas gozam de um especial protecção da liberdade de expressão...
A Joana era uma funcionária judicial que tinha muitos problemas de relacionamento com os colegas. A certa altura, foi-lhe instaurado um processo disciplinar. No âmbito do processo, na qualidade de testemunha, foi ouvido João, um juiz de direito do tribunal onde ambos exerciam funções.
E aí declarou que "... confirma que por várias vezes chamou a atenção do sr. escrivão para expressões e actuações menos próprias da sra. funcionária, Joana. Não pode agora confirmar quais, mas recorda-se de alguns tratamentos por "você" e de por vezes de má vontade no cumprimento do determinado." Recorda-se ainda "de duas boas funcionárias concorrerem para o Tribunal do Trabalho, por via do mau ambiente criado por aquela funcionária". "Para isso poderia concorrer o facto de a mesma ser licenciada em direito e por isso se julgar mais apta que as demais."
A dr.ª Joana não gostou das declarações do juiz e participou criminalmente contra ele, acusando-o de ter cometido um crime de difamação ao ter proferido aquelas afirmações. Mas o Ministério Público não a acompanhou na acusação por entender que não poder haver difamação na prestação de um depoimento num processo disciplinar, analogamente a um processo criminal, exceptuando se no depoimento houver uma consciente e intencional vontade de faltar à verdade.
O João requereu, naturalmente, a abertura de instrução, para evitar a ida a julgamento. Seria um absurdo: responder criminalmente pelas declarações que prestara, como testemunha e estando obrigado a falar verdade, em sede de um processo disciplinar, sendo certo que os seus depoimentos reproduziam a verdade do que sabia e eram, de resto, corroborados por outras testemunhas ouvidas no referido processo.
E o juiz de instrução deu razão ao João. Mas a Joana conseguiu, por questões processuais fastidiosas, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pedindo que o STJ ordenasse a pronúncia e consequente sujeição a julgamento do João, já que a difamara.
Mas não teve nenhuma sorte. Os juízes conselheiros Simas Santos, Santos Carvalho e Costa Mortágua, desde logo, lembraram que "... o interesse público (e a lei) impõem que aqueles que são ouvidos em processo administrativo de natureza disciplinar têm a obrigação de se pronunciar, com verdade, sobre os factos que se encontrem a ser averiguados: a matéria respeitante aos elementos constitutivos da infracção disciplinar, e a personalidade da arguida, bem como todas as circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida que militem contra ou a favor da arguida" e daí que, "exceptuados apenas os casos em que (se) falte conscientemente à verdade", é evidente que declarações, mesmo que consideradas, "objectivamente desonrosas" proferidas no âmbito disciplinar "... nunca poderiam ser puníveis, sob pena de ser impossível punir os funcionários responsáveis por comportamentos antijurídicos mais ou menos graves e assegurar a indispensável funcionalidade da administração e das instituições".
A liberdade de expressão, no âmbito de um depoimento prestado num processo disciplinar ou judicial, encontra-se particularmente protegida já que há um interesse da sociedade em que se possam fazer afirmações mesmo que "ofensivas". E que tais afirmações não possam ser puníveis, sob pena de se coarctar a circulação da verdade. Sendo certo que toda a verdade é a verdade possível...
Aquilo que João declarara no processo, para além de ser a "sua verdade" e ter o direito/dever de a exprimir, era, também, confirmado por outras testemunhas, inclusive uma juíza apresentada pela própria Joana, que revelavam a existência da conflitualidade entre a Joana e os restantes funcionários. E, assim, o juiz João não foi julgado. E a Joana, embora não tenha sido condenada como litigante de má-fé, pagou umas custas agravadas...