quarta-feira, 24 de agosto de 2005

Faleceu o Juiz Conselheiro Armando Sá Coimbra

Morreu hoje o meu amigo, colega e mestre Conselheiro Sá Coimbra, que sempre terei como exemplo de cidadão e magistrado.
Foi mensageiro dessa infausta notícia o comum amigo António Arnaldo Mesquita, na singela mensagem que aqui deixo:
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Armando Sá Coimbra (1919-2005) faleceu hoje no Porto e o funeral realiza-se amanhã, pelas 10h.00, da Igreja de Cedofeita para o cemitério de Barcelos. Escritor e juiz conselheiro, Sá Coimbra publicou quatro romances (“O Sol e a Neve”, “Teia”, Chancela” e “Cor do Ouro” e duas peças de teatro (“Até à vista” e “O Relógio”. Mas a biografia de Sá Coimbra inclui também sinais de um “magistrado íntegro e radicalmente independente, que se impôs ao respeito de todos os advogados e de todos os que com ele trabalhavam”, garante o conselheiro Artur Costa, numa evocação recente na Revista do Ministério Público.
Desde a adolescência, Sá Coimbra nunca perdeu o ensejo de exprimir a sua capacidade de afirmação e acabaria por ser expulso “por indisciplina” de um seminário, prosseguindo os seus estudos para concluir o curso na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1945. Desta fase da sua vida inspirou-se para o seu primeiro romance, “Teia”. Óscar Lopes prefaciou o romance e sintetiza a trama. “É a história de um seminarista que descobriu no seminário não ter sido nunca verdadeiramente inspirado pela vocação sacerdotal e que, depois de vencidas muitas dificuldades, consegue chegar ao fim do curso de Direito”. “O tema de Teia pode resumir-se assim: uma consciência que se busca a si própria por entre o que a vida lhe oferece e lhe nega, e que nesta busca descobriu o seu lugar e o dos outros, no mundo, se transformou, ganhou consciência”, frisa o autor de “O Modo de Ler”.
Nas três décadas seguintes, Sá Coimbra foi magistrado judicial nas três instâncias e da sua passagem pelo Tribunal de Polícia do Porto ficaram ecos de uma perspicácia e ironia ímpares, com que condenava um tempo que gerava homens e mulheres que as agruras da vida encaminhavam para o “banco dos réus”. Nesse tribunal do “pé rapado”, recorda o conselheiro Artur Costa, Sá Coimbra ganhou “uma aura de juiz inconformista e destemido”, que lhe “valeram a marginalização e a perseguição, quer do poder político, quer do poder corporizado nas instituições judiciárias”.
O escritor Armando Sá Coimbra acabaria por retratar o universo judicial anterior a Abril de 1974 num outro romance”Chancela”, saído do prelo há quase três décadas e que está há muito esgotado. O prefácio de Maria Glória Padrão começa assim: “Pardo é Prado. Prado é juiz. Pardo é o juiz. Este juiz que se movimenta nesta narração e de que o narrador se serve para questionar uma forma brutal de poder — o poder dos tribunais”.

Para quem melhor o quiser conhecer que leia a sua obra e estes dois prefácios, na íntegra, são o melhor incentivo. Um é de Óscar Lopes e outro da Maria da Glória Padrão, que é feito de ti, mulher?

TEIA, Sá Coimbra
Prefácio de Óscar Lopes

Teia é o primeiro romance que Sá Coimbra escreveu, embora só tivesse sido publicado um ano depois de O Sol e a Neve. Como seria de esperar na primeira obra de um romancista, os heróis de Sá Coimbra são em grande medida veículo do muito que há de significativo na vida do autor; quando seminarista, quando estudante de Direito. Contudo, Teia não é um pretensiosismo autobiográfico, e muito menos, uma tentativa adolescente de "escrever um romance". Esta obra é mesmo um romance no sentido de expressão artística que se procura total de realidade social e psicológica do homem. Para isso contribui grandemente uma vasta experiência pessoal de juiz, que compreende o sentido social da justiça e da moralidade que procura e sabe como encontrar os últimos porquês das acções humanas. Esta experiência de Sá Coimbra jorra por toda a sua obra, revigora com realismo os pormenores mais acidentais e deixa ficar no leitor como que uma adesão, uma revelação daquilo que em si já pressentia.

Teia é a história de um seminarista que descobriu no seminário não ter sido nunca verdadeiramente inspirado pela vocação sacerdotal e que, depois de vencidas muitas dificuldades, consegue chegar ao fim do curso de Direito; mas o significado profundo deste romance não se esgota nos acidentes da vida imaginária dos seus heróis. Cada um de nós, seminarista ou não, estudante de Direito ou não, encontra lá um pouco de si próprio. O tema de Teia pode resumir-se assim: uma consciência que se busca a si própria por entre o que a vida lhe oferece e lhe nega, e que nesta busca descobriu o seu lugar e o dos outros, no mundo, se transformou, ganhou consciência.

Óscar Lopes

A CHANCELA, Sá Coimbra

Pardo é Prado. Prado é juiz. Pardo é o juiz. Este juiz que se movimenta nesta narração e de que o narrador se serve para questionar uma forma brutal de poder — o poder dos tribunais.
Pardo é Prado. No universo da relação familiar tipifica a instituição que transporta para o espaço da casa (passado o momento de pitoresco que vive na primeira noite nos Açores) a condição da marca de classe que suporta. É juiz.
Pardo é Prado. No universo da relação social é o voluntária e conscientemente arredado dela, num círculo de estreitamento que lhe castra o gesto do dialogo. Restar-lhe-á o rato necessário para o dizer estereotipado do bom dia. Porque para o espaço da relação com o outro, ele transporta a condição da marca de classe que suporta. Ele é juiz.
Pardo é Prado. No universo da relação profissional, em deambulação geográfica, vai sendo promovido. Por tempo.
Mas também por competência, lato é, por assepsia, meticulosamente cumpridor da lei. Porque no espaço da hierarquia de que depende e sobre que impende, ele transporta a condição da marca de classe que suporta. É juiz.
Pardo é Prado. Agora com toda - a força da superlativação.
No universo da relação superstrutural, não se descola da escrupulosa execução da norma jurídica com a consequente deslocação de valores: os códigos são, acima de qualquer suspeita; os processos são, acima de qualquer cidadão.
O prémio é óbvio: o convite para o tribunal político. Produto de um sistema que nunca põe em causa, automatizando-se numa pretensa e cega independência, começa como vítima dele, sistema, e acaba como vítima de si próprio: por não optar, optam-no. É guarda, castrador de si, do outro, até à morte. Linearmente.
Quando a família sai do cemitério, mudara já o pano de fundo: Venceremos, venceremos, / a batalha da terra e do pão!» É o canto atirado para a rua a derrubar a história que pariu a lei que o juiz cumpriu. Canto colectivo de polaridade oposta ao fado que plana desde os Açores: «Tudo lato é fado.» O jogo oposicional de sons é outra simbologia dos dois momentos históricos em que se processa a diegese.
Mas em tempo de fatalismo já Pedras tem a funcionalidade de contrariar o fado desde os mais rotineiros sinais até à questionação mais profunda do espaço normativo em que se movimenta a forma de poder. Por isso, pretendendo servir o homem, manter-se-á com o labéu de perigoso e deixará de ser nomeado no texto depois da data da transformação. Porque a história do poder começará a ser contada de outro modo!
A narração é ainda um lugar de movimentação de peque nos grandes casos ou acidentes humanos, esferas auxiliares que contribuem para a fixação da impessoalidade do juiz Prado que, apesar do sistema e também por causa dele, vive frequentemente uma crise de identidade de que lhe advém um complexo de culpa presente em alguns dos momentos mais humanos deste texto.
Por isso, o título permite a ambiguidade: chancela será metáfora de sistema, de processo, de sujeito. Só numa perspectiva ele é rígido: nunca metáfora de povo em movimento.

Maria da Glória Padrão

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Faz algum tempo que, neste espaço, o Conselheiro Artur Costa exprimiu um sentir de muitos amigos e admiradores, que esta morte inesperada (sempre inesperada) já não permitirá concretizar com o mesmo significado, mas que impõe seja relembrado.

«Li, já lá vão uns dias, uma curta, mas digna nota biobibliográfica de Sá Coimbra, e fiquei com vontade de acrescentar alguma coisa da minha experiência pessoal com essa figura ímpar de magistrado que ele foi. Na verdade, tive o privilégio de conviver com ele e com ele compartilhar alguns projectos, como o da Fronteira. Conheci-o na posição de advogado estagiário, quando o Dr. Sá Coimbra era juiz de um juízo correccional, no Porto. Tive, então, ocasião de observar a sua qualidade de magistrado íntegro e radicalmente independente, que se impôs ao respeito de todos os advogados e de todos os que com ele trabalhavam. Estava-se ainda no fascismo e, por isso, mais sobressaíam tais atributos, que, aliás, lhe valeram a marginalização e a perseguição, quer do poder político, quer do poder corporizado nas instituições judiciárias, estas não sendo mais do que a emanação daquele. O Dr. Sá Coimbra ficou a marcar passo na 1ª instância, até que o regime democrático instituído pelo 25 de Abril lhe fez justiça.Antes da sua colocação nos Correccionais, o Dr. Sá Coimbra tinha estado num tribunal de polícia – o tribunal do «pé rapado» -, onde a sua humanidade, a sua cultura, a sua sensibilidade e a ironia mordaz com que sublinhava muitas situações do quotidiano policial e autoritário, tão opressivo das franjas marginais da sociedade, lhe granjearam uma aura de juiz inconformista e destemido, com honras de destaque na imprensa. Quem quisesse conhecer a natureza do regime que vigorava antes do 25 de Abril tinha nos tribunais de polícia um espelho de eleição. Por isso, muitos jornais, que tinham o terreno barrado pela censura, lhes dedicavam crónicas diárias saborosas, falando habilmente do regime opressivo, e jornalistas houve que, sendo repórteres desse quotidiano judiciário, ficaram célebres. Um deles foi Mário Castrim.
E houve juízes que souberam impor-se como extraordinários exemplos de aprumo cívico e profissional no lidar com a miséria quotidiana de que se compunha essa justiça aparentemente de «rebotalho». Um deles foi Sá Coimbra e outro, mais ou menos da mesma altura, foi o Dr. Quintela, um juiz que também foi pontapeado pelo regime. Não o conheci, mas ainda há feitos seus que ecoam nos nossos ouvidos, pelo menos dos mais velhos. O Dr. Quintela, um dia, condenou uma pobre vendedeira, por questões de negócio na rua, sem licença. Mal acabou de ler a sentença, levantou-se e disse para a assistência: «E agora vamos aqui abrir uma subscrição para pagar a multa à mulher, porque, se não, ela vai para a cadeia; eu sou o primeiro a contribuir». E mergulhou a mão no bolso, de onde extraiu umas moedas. Haverá um gesto de maior «desmistificação» do que este? Para quando uma história dos tribunais de polícia?Conheci então o Dr. Sá Coimbra mais tarde, nos Correccionais, já ele tinha uma aura de juiz singular, isto é, «irregular». Foi o juiz de 1ª instância mais escrupuloso que conheci no apuramento da matéria de facto e na preocupação de fazer justiça. Onde se é juiz a sério é na 1ª instância, e foi com o Dr. Sá Coimbra que eu comecei a ter essa exaltante sensação. Talvez tenha contribuído para diluir a relutância que eu sentia pela magistratura. Tratava todos os profissionais – Ministério Público, advogados – por colegas. «Colega, tem a palavra.» Mas era um tratamento autêntico, não aquela capa de superioridade, disfarçada de condescendência, de que se revestem os mais altamente colocados na hierarquia ou numa posição de autoridade para fingirem uma proximidade fraterna com os que sentem ser-lhes inferiores. Nos intervalos, convocava todos para o seu gabinete, para fumar um cigarro e discretear sobre os mais diversos assuntos.
Não era só escrupuloso, mas corajoso. Quando foi do julgamento de dois polícias da PSP e um da PJ (se não estou em erro), por agressão, nas instalações da PJ do Porto, ao Néné Santos Silva (como nós lhe chamávamos), na sequência dos acontecimentos da crise académica de 1969, demonstrou abundantemente essas suas qualidades. Tanto na condução do julgamento, como na decisão final, em que condenou dois dos arguidos e absolveu o outro, absolvendo também o próprio Dr. Artur Santos Silva, que foi acusado de ter agredido ou injuriado membros da PJ, quando, no mesmo dia, foi às instalações daquela polícia tirar satisfações pela agressão ao filho. Este, portador de uma grave doença cardíaca, não haveria de chegar com vida ao dia do julgamento. Corria o ano 1972. Com pouco mais, estava-se no 25 de Abril. Nessa altura, já eu era magistrado.
Quando, depois de andanças pelo Sul, regressei ao Porto para fazer estágio na magistratura judicial, vim a privar com o Dr. Sá Coimbra e a tornar-me amigo dele. Havia um grupo de magistrados na capital nortenha que se distinguia pelas suas qualidades cívicas, culturais e profissionais. Foi uma plêiade de magistrados que marcou uma época. Entre outros, lembro Roseira de Figueiredo, que foi presidente da Relação do Porto a seguir ao 25 de Abril, Flávio Pinto Ferreira, o autor de Para Uma Abordagem Sociológica Da Magistratura Judicial, que chegou a ser secretário de Estado, Fernando Fabião, Herculano Lima, que ficou à frente da Procuradoria da República no Distrito do Porto nos alvores da democracia e, claro, Sá Coimbra, que, sendo de todos o que tinha mais prestígio intelectual, ficou a presidir à revista Fronteira – uma revista inovadora para discussão de temas constitucionais, a que esses magistrados deram alma e que – ponto muito importante – não estava confinada ao mundo judiciário, abrindo-se a outros sectores. Nessa revista, o Dr. Sá Coimbra escreveu vários artigos de grande relevância para uma outra compreensão do direito, da magistratura, da função de julgar, em que sobressaía a sua preocupação pela abertura do juiz ao mundo «profano», buscando aí tanto a sua legitimação, como a sua «dessacralização». Muitos desses textos, lidos hoje, ainda causariam surpresa pela novidade e ousadia.Foi nesse período que ele deu à luz a Chancela, um romance todo ele enraizado na experiência judiciária e que condensa o seu pensamento e a sua sensibilidade em torno da função de julgar, ao mesmo tempo que constitui um fresco do panorama da justiça em Portugal antes do 25 de Abril. Editado pelo prestigiado Cruz Santos, ao tempo da Editora Inova, apareceu com uma apreciação crítica de Maria da Glória Padrão reproduzida na badana da capa. Mas não é só na Chancela que emerge, embora aí apareça com toda a nitidez, dada a especificidade do tema, o acto de julgar como objecto de efabulação. Também em outros livros, como O Sol e a Neve, aparece a figura do juiz entronizado na sua função, aí num belo episódio, pleno de observação crítica, que poderia figurar numa antologia de textos literários acerca da justiça e que também veio reproduzido num dos números da Revista do Ministério Público, na secção designada de Vária, por sugestão que fiz ao Maia Costa, sendo eu, então, membro do Conselho da Redacção.
Recolhendo em síntese as principais qualidades do Dr. Sá Coimbra, destacaria: o espírito de radical independência, a coragem, a probidade intelectual e funcional, o aprumo cívico, o combate lúcido pela dignificação de julgar numa perspectiva democrática e não corporativa, a solidariedade interprofissional, a abertura à polis, onde o acto de julgar cobra fundamento e justificação. Falei sobretudo do homem e não do escritor, que esse mereceria apreciação autónoma. Quantos de nós, com trinta anos de democracia em cima, nos poderíamos reclamar de um tão rico naipe de qualidades?Pergunto: onde é que estão os políticos da nossa democracia que nunca foram capazes de encontrar, nos meios judiciais, homens como este para lhes atribuírem uma pequena distinção, em nome da comunidade que eles serviram com honra e verdadeiro empenho cívico, quando esbanjam comendas a torto e a direito por uma espécie em voga: os novos ricos da democracia? Onde estão eles, afinal, que, quando se lembram de atribuir honrarias desse tipo a magistrados, vão indagar junto dos presidentes dos conselhos superiores a quem as devem atribuir? Há tempos, um jornalista dos mais brilhantes da cidade do Porto – Germano Silva, da Visão – que foi um dos cronistas, ao serviço do Jornal de Notícias, que reportou, diariamente, os julgamentos do tribunal de polícia, perguntou-me para quando uma homenagem da «classe judicial» (foi assim que ele se exprimiu) ao Dr. Sá Coimbra. Encolhi os ombros envergonhado e culpabilizado. Artur Costa »

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