quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Um anteprojecto

1. Lê-se no site do Ministério da Justiça que “REFORMA PENAL JUNTA ESPECIALISTAS”, isto a propósito de uma primeira reunião da Unidade de Missão para a Reforma Penal, coordenada por Rui Pereira, que teve lugar no passado dia 3 de Outubro, para análise do anteprojecto da lei-quadro da política criminal. Os “especialistas” terão sido uma amálgama de representantes do Gabinete do Ministro, Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior do Ministério Público, Ordem dos Advogados, Polícia Judiciária, Centro de Estudos Judiciários, Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, Instituto de Reinserção Social, Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, PSP e GNR. Desconhecem-se os critérios que presidiram à escolha desses “representantes” e quais os currículos que os ornamentam.

2. O anteprojecto da chamada “lei-quadro da política criminal”, sobre que se debruçam tais “especialistas”, parte da constatação de que «nem todos os crimes acabam por ser punidos, até por causa da limitação dos recursos disponíveis», e parece apostado sobretudo em «não permitir a manipulação de processos concretos» ou, por palavras mais eufemistas, em «definir prioridades na investigação criminal e no exercício da acção penal», através do estabelecimento, bienalmente, de «objectivos, prioridades e orientações, tendo em conta, em cada momento, as principais ameaças aos bens jurídicos protegidos pelo direito penal» e, no que respeita à chamada pequena criminalidade, através da «formulação de orientações genéricas […] sobre a suspensão provisória do processo, o arquivamento em caso de dispensa de pena, o processo sumaríssimo e o julgamento por tribunal singular de processos por crimes puníveis com pena de prisão superior a cinco anos».
Muito embora o anteprojecto proclame o respeito pelo princípio da legalidade e pela independência dos tribunais, e até pela autonomia do Ministério Público, não deixa de salientar que «o seu destinatário é o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, uma vez que dele depende a iniciativa de recorrer aos chamados mecanismos de oportunidade». Isto apesar de reconhecer que as “orientações” dirigidas ao Ministério Público «não estão dotadas de força obrigatória geral e não vinculam os tribunais».
Esta iniciativa do Governo de «apresentar a proposta de objectivos, prioridades e orientações» assumirá a forma de proposta de resolução a apresentar à Assembleia da República e, depois de aprovada, vinculará, para além desta, o Governo, o Ministério Público, na qualidade de “co-responsável pela execução da política criminal”, e “todos os órgãos de polícia criminal que têm o dever funcional de o coadjuvar”. Esta vinculação «estende-se do plano da estrita prevenção, pré-processual, ao domínio da instauração do processo e da condução do inquérito, abrangendo a concomitante investigação criminal». E o Procurador-Geral da República, «a quem compete emitir as directivas, ordens e instruções destinadas a fazer cumprir as resoluções», apresentará «ao Governo e à Assembleia da República um relatório sobre a sua execução, as dificuldades experimentadas e os modos de as superar». A Assembleia da República, por sua vez, «pode dirigir ao Governo recomendações sobre a execução da política criminal».

3. Este Anteprojecto, redigido numa linguagem elíptica e protésica, suscita, numa primeira abordagem, algumas perplexidades e interrogações.
Desde logo, a confusão que estabelece entre um problema prático de gestão de meios e definição de prioridades, próprio de qualquer serviço público, com uma questão impropriamente chamada de política criminal, que V. Liszt define como «conjunto sistemático dos princípios fundados na investigação científica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da pena e das instituições com esta relacionadas», e F. Dias, em palavras mais singelas, mas não menos expressivas, como «a definição das estratégias de controle social do fenómeno da criminalidade, cujas quotas aumentam por todo o lado». Como é bem de ver, o que está na preocupação do Governo, na elaboração desde anteprojecto, é, perante e a pretexto da constatação de uma incapacidade de lutar eficazmente contra o crime, mais a preocupação de «não permitir a manipulação de processos concretos» (vá-se lá saber porquê e com que razões concretas), o que nada tem a ver com a definição de uma adequada e séria política criminal.
Depois, muito embora se afirme piamente que «a autonomia do Ministério Público, consagrada nos termos do n.º 2 do artigo 219.º da Constituição, é salvaguardada por não poderem ser emitidas directivas, ordens ou instruções referentes a processos determinados, seja pelo Governo seja pela Assembleia da República» (era o que faltava! nem no tempo de Salazar isso acontecia!), haverá forma mais descarada de atentar contra a autonomia do Ministério Público do que esta preconizada fixação de “objectivos, prioridades e orientações” para, verdadeiramente, obstar a uma alegada e pretensa “manipulação de processos concretos”, por parte, entenda-se, do Ministério Público?
Estabelece-se uma obrigação de o Procurador-Geral da República, no termo de cada ciclo de dois anos, apresentar ao Governo e à Assembleia da República um relatório sobre a execução daqueles “objectivos, prioridades e orientações”, as dificuldades experimentadas e os modos de as superar. Mas não é que o Procurador-Geral da República não elabora e publica já um relatório anual onde, bem ou mal, dá conta de toda a actividade desenvolvida pelo Ministério Público e onde aponta as dificuldades (crónicas) experimentadas e os modos de as superar? O que é preciso é que alguém o leia, particularmente os sucessivos governos, o analise e dele retire as necessárias consequências, deixando de continuar a fazer ouvidos de mercador e empenhando-se em dotar as instituições de investigação e acção penal dos necessários recursos humanos e materiais. Ou será que, agora, com este novo relatório, tudo se vai resolver a contento duma boa administração da justiça penal?
No articulado do anteprojecto consta uma norma do seguinte teor: O Ministério Público, nos termos do respectivo estatuto, e os órgãos de polícia criminal, de acordo com as correspondentes leis orgânicas e as directivas, ordens e instruções do Governo, assumem os objectivos e cumprem as prioridades e orientações constantes das resoluções sobre política criminal e afectam aos processos por crimes a que estas se reportam os recursos humanos e materiais necessários. Quanto à afectação de recursos humanos e materiais, tudo bem; mas quanto às “directivas, ordens e instruções do Governo” a pretexto de uma impropriamente chamada política criminal, ou seja, quanto à actuação dos órgãos de polícia criminal no âmbito do processo penal, tudo mal. É que assim dá-se uma machadada mortal na orientação e dependência funcional dos órgãos de polícia criminal a cargo do Ministério Público no processo penal, desvirtuando-se uma das pedras de toque do vigente Código de Processo Penal.

4. Este anteprojecto representa um ataque descabelado à autonomia do Ministério Público, constitucionalmente consagrada, e uma tentativa de menorização e domesticação desta magistratura. E parece constituir mais um passo na senda seguida pelo actual Governo de desmoronamento do já frágil e periclitante sistema de justiça que temos, sem que se vislumbre algo de novo e diferente a ser construído em sua substituição.
Melhor seria que os nossos responsáveis pela política criminal restabelecessem canais de diálogo e cooperação com a Procuradoria-Geral da República, para além das outras instituições judiciárias, na busca de soluções mais eficazes e eficientes. As prioridades, essas sim, de política criminal certamente que surgiriam, sem grande esforço, naturalmente e em ambiente de harmonia institucional.
O país teria a ganhar com isso e a esperança de tempos melhores no mundo da justiça talvez começasse a ganhar alento. O resto é passagem, e dos fracos não reza a história.

Fixação de Jurisprudência - Recurso de matéria de facto - Prorrogação do prazo de interposição

O Supremo Tribunal de Justiça, fixou na sessão de 11 de Outubro de 2005, no processo n.º 3127/04, Relator: Cons. Heneriques Gaspar, a seguinte jurisprudência:
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«Quando o recorrente impugne a decisão em matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o recurso deve ser interposto no prazo de quinze dias, fixado no artigo 411º, nº 1 do Código de Processo Penal, não sendo subsidiariamente aplicável em processo penal o disposto no artigo 686º, nº 6 do Código de Processo Civil».

O direito dos juízes à greve

Por Octavio Castelo Paulo, com José Rodrigues da Silva, António Ferreira Girão, Soreto de Barros, Bettencourt Faria, Noronha Nascimento, OrlandoAfonso, Afonso Henrique Ferreira, antigos presidentes e secretários-gerais da ASJP, no Público de hoje:

A greve dos juízes é possível não porque sejam titulares de órgãos de soberania, mas porque o exercício dessa titularidade tem na base uma carreira profissional a que se ascende por concurso público

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