quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Recorribilidade ou âmbito do recurso

No Supremo Tribunal de Justiça (designadamente na 5.ª Secção) têm-se defrontado duas posições sobre um tema de grandes consequências práticas.

Tendo o arguido sido condenado pela prática, em concurso real de infracções, de vários crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos e de um crime punível com pena superior a 5 anos de prisão, condenação confirmada pela Relação, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso que é seguramente admissível em função da pena infligida pelo crime.

Segundo uma das posições (a dominante neste momento), o Supremo Tribunal só deve conhecer do recurso quanto ao crime mais grave e, se for caso, em relação à pena única. Invoca-se o disposto na al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP (irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 5 anos).

De acordo com a outra posição, a invocada al. e) do n.º 1 do art. 400.º dirige-se somente à admissibilidade do recurso, como reza o corpo do n.º 1 e esgota o seu campo de aplicação com a decisão sobre a (in)admissibilidade do recurso. Admitido o mesmo, a questão passa a ser a do âmbito do mesmo recurso e tal problema apela, não para o art. 400.º, mas sim para o art. 402.º do CPP que, como a sua epígrafe anuncia, trata exactamente do âmbito do recurso e que dispõe no n.º 1 «sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão», no caso, todos os crimes.

Quid iuris?

As listas negras do Fisco

1. A imprensa diz que a Administração Fiscal (AF) está a ponderar a divulgação pública, através da Internet, dos nomes dos contribuintes que não pagaram os impostos, o que abrangeria um universo de cerca de 800 mil pessoas. Tal começaria a suceder a partir do início do próximo ano.
O Director-Geral dos Imposto terá afirmado que a lista não deverá incluir os contribuintes com dívidas cobertas por garantia nem os sujeitos passivos que impugnaram ou reclamaram dessa dívida e cujo processo corre os seus trâmites normais.

Não está em causa, bem pelo contrário, o propósito do Governo de fazer aplicar o princípio da verdade e da igualdade no pagamento dos impostos. A Constituição é clara quando afirma que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”.
Todos vamos, porém, tendo a percepção – espera-se que errada – de que os impostos são cobrados ao cêntimo àqueles que têm os rendimentos visíveis, mas que a Administração Fiscal pouco investiga as situações dos que se escapam – investigações burocráticas ou mesmo hoje as que se socorrem dos meios informáticos revelam-se insuficientes – sendo muitas vezes aqueles os que mais deviam pagar.

2. Questão algo diferente será a das “listas de não pagantes” ora em causa, as quais respeitarão não aos que se evadem não declarando, mas àqueles em que houve liquidação mas não pagaram.

O que agora interrogo é sobre a base legal existente para a publicitação de tais listas.
É que a mesma Constituição afirma o princípio da defesa das “garantias dos contribuintes” – artigo 103º, n.º 2 – o que é reiterado na lei ordinária quando explicita que “a administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes...”

Não tenho dúvidas que os dados constantes dessas eventuais listas, especialmente e na medida em que liguem a identificação civil de alguém a uma dívida fiscal, são “dados pessoais” sujeitos à Lei de Protecção de Dados Pessoais (LPDP), que hoje abarca não apenas os dados informatizados como também os detidos em suportes manuais.

Ora, olhando para essa LPDP, verifico que mesmo para fins de investigação policial – e ainda não estaremos aí, mas apenas na fase de solicitar a alguém que pague o que deve ao Estado – o tratamento dos dados pessoais deve limitar-se ao necessário para a prevenção de um perigo concreto ou para a repressão de uma infracção determinada, para o exercício de competências previstas no respectivo estatuto orgânico da AF ou que haja uma disposição legal a autorizar.

Por outro lado, os funcionários estão sujeitos ao sigilo profissional cuja violação está prevista e é punida criminalmente nessa Lei – artigos 17º e 47º.
Existe, porém, outra lei especial que se sobrepõe? O Governo deve explicar.

Certo que as pessoas se podem queixar para a Comissão Nacional de Protecção de Dados e que esta possui poderes para, se for caso disso, ordenar o bloqueio, apagamento ou destruição dos dados, bem como o de proibir, temporária ou definitivamente, o tratamento de dados pessoais, ainda que incluídos em redes abertas de transmissão de dados a partir de servidores situados em território português.

3. Mas poderemos passar a discussão para um plano superior: eticamente é adequado este procedimento, ainda que esteja apoiado numa norma legal?
Todos concordaremos que o pagamento de impostos deve ser exigido aos cidadãos na medida do que for justo. E que o Estado tem a obrigação de providenciar pela cobrança usando os meios legítimos.
Em face, porém, dos valores que suportam a vivência numa sociedade em que cada cidadão é suposto dispor de um reduto de dignidade que não pode ser atingido, é admissível que a AF coloque listas dos não pagantes em “locais” públicos (a Internet não pode deixar de ser considerada como tal), nas quais incluirá não apenas os relapsos (e mesmo para estes é de ponderar) como muitos outros cidadãos que, pelos motivos mais variados, alguns deles porventura bem justificáveis, não conseguiram saldar as dívidas ao Fisco?
Esta forma de envergonhar publicamente está de acordo com aquele princípio, ou com o da tolerância, ou o da preservação da vida privada? Esta forma de pressão/prevenção é proporcionada aos interesses que estão em jogo?

Ou estaremos a ratificar o que alguns comerciantes adoptaram quanto aos seus devedores privados (aí com dívidas apenas sujeitas a um “apuramento” unilateral), colocando a lista na montra do estabelecimento, ou o que fez época no PREC com as listas dos procurados pelas milícias populares?

De modo algum se procura encapotar aqueles que podendo não pagam ao Fisco ou os que pagam quantias irrisórias face aos seus proventos. Mas o que me parece não se poder dar guarida é a uma AF que age de forma preguiçosa, por processos que colidirão com princípios que também desejamos salvaguardar.

Acima de tudo creio que os cidadãos precisam de ser esclarecidos sobre os fundamentos duma medida que a AF já admite como muito provável a partir de um futuro próximo, a fim de poderem reagir.
Formulamos votos de que tudo não passe de um mal entendido.