Juízes do Supremo têm acórdãos demais
«"Juízes do Supremo têm acórdãos demais"
Esclareça-se que, em 2005, os juízes das secções criminais do STJ receberam 90 processos para relatar e tiveram intervenção em outros 250 como adjuntos
Informação e reflexão jurídicas
«"Juízes do Supremo têm acórdãos demais"
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I - Tendo-se apurado apenas que «por razões não concretamente apuradas mas que se prendem com o mau relacionamento existente entre eles, entraram ambos [arguido e ofendido] em discussão, discussão essa que ocorreu sensivelmente a meio do muro que separa ambos os quintais», mas ignorando-se quem iniciou tal discussão, não pode sufragar-se a tese do acórdão recorrido vertida na afirmação segundo a qual «a discussão, que precede a conduta do recorrente, não atenua a sua culpa pelo facto, na medida em que não se provou que tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida que despoletasse aquela reacção por descontrolo emocional».
II - É que se não se provou que o arguido «tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida», também se não provou que o ofendido o tivesse sido, ou, sequer, que tenha sido o arguido a dar início à discussão.
III - Daí que o basilar princípio processual probatório in dubio pro reo, como se sabe, reflectido no art. 32.º, n.º 2, da Constituição, imponha que o tribunal valorize este espaço de dúvida - o de saber quem iniciou a discussão e o porquê dela - em favor do arguido.
Ac. do STJ de 5.5.2005 Proc. n.º 237/05-5 Relator: Pereira Madeira
Posto por Simas Santos à(s) 31.1.06 0 comentários
Calhou de ler, há dias, nos jornais, que o Professor Doutor Costa Andrade, num parecer adrede emitido para um caso muito badalado, sustenta uma tese que me deixou espantado e que, na altura, levei à conta de mais uma incorrecção jornalística.
Afinal, é bem verdade. Escrito, preto no branco, sustenta o ilustre catedrático, entre o muito mais, e em jeito de conclusão, que «No direito positivo português vigente não há recurso das decisões que não apliquem ou que revoguem as medidas de coacção». Mais: «Só à custa da inconstitucionalidade do artigo 219º – e reflexamente do artigo 399º – do Código de Processo Penal se poderia admitir que aquele preceito abrisse a possibilidade de o Tribunal Superior vir, contra decisão da primeira instância, ordenar a aplicação ou a continuação duma medida de coacção». E mais ainda: «Diferentemente do recurso da decisão de não aplicação ou revogação das medidas, o recurso da decisão de aplicação ou manutenção das medidas de coacção, mesmo reportado ao passado, mantém toda a utilidade e faz todo o sentido. Tem sempre uma eficácia reparadora no plano moral, enquanto no plano material [aí vai cutelo] pode determinar e sustentar a pretensão à indemnização do arguido». Vale a pena ler o resto.
Como diria o meu amigo Pancrácio de Oliveira, se o Bid Laden, um dia, fosse preso em Portugal e um juiz, simpatizante da Al Qaeda, o libertasse de seguida, deixando de impor a medida de prisão preventiva, o Ministério Público, intérprete por excelência do interesse público, não poderia recorrer dessa decisão. Ou, pela mesma lógica de tão douto parecer, também o MP jamais poderia recorrer de decisões absolutórias.
A mim, que não percebo nada de juridismos, parece-me é que a crise é bem mais profunda e extensa do que aparenta.
Posto por Anónimo à(s) 31.1.06 0 comentários
Em França, o político e o judiciário estão (uma vez mais) em colisão. O mundo mediático parece exultar e, ampliando o fragor político que começou pelo Presidente, clama por justiça (...). O sector político aproveitou ambiente o emocional gerado e a oportunidade, mediática e de opinião, para aparentes “ajustes de contas” com o sistema. Novidade a exigir reflexão e a determinar alguma perturbação nos necessários equilíbrios institucionais das democracias consolidadas: está instalada e em audições uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar sobre o “desastre judiciário” em que foi transformado o caso d’Outreau. No pelourinho (...), o juiz de instrução (...) Fabrice Burgaud (que foi já ouvido durante todo um dia pela Inspecção-Geral dos Serviços Judiciários, e será ouvido na comissão parlamentar no dia 8 de Fevereiro), transformado, de um momento para o outro, de “herói” da magistratura em “symbole honni d’une justice qui se trompe et brise des innocents” (“Nouvel Observateur”, 19-25 de Janeiro). (...) A fronda política e mediática tem sido impressionante. Declarações inflamadas sobre os horrores da justiça (...), debates nas televisões dando voz em directo às vítimas (os inocentes) de Outreau. Tudo (...) às costas de um juiz de instrução – que, de resto, no decurso do processo, viu confirmadas pelas instâncias superiores todas as suas decisões e a maior parte das prisões preventivas que ordenou, e que, alguns dias antes da audiência, colhia louvores pela instrução que dirigiu. (...) No entanto, (...) não tenho dado conta de referências a factores elementares que (...) todos parecem desconsiderar: a fluidez, por vezes inescapável, dos elementos com que o juiz trabalhou e que o levaram a seguir por onde seguiu. No caso, o “récit” de alguns intervenientes e, especialmente, as declarações de uma testemunha que muito falou (...) e que, por fim, na audiência, tudo desdisse. E este seria o elemento central que deveria fazer mexer consciências tão perturbadas e que é esquecido no tsunami político e mediático contra a justiça. E também – por prevenção – verificar que revolução mais ou menos de veludo ou de silêncio quase anestesiante parece estar a caminho (noutras paragens, mas bem próximas) para permitir, sem discussão, que uma comissão parlamentar, quebrando todos os equilíbrios da separação de poderes, investigue sobre a actuação e as decisões de instituições judiciais num caso concreto»
Cons. Henriques Gaspar, Sine Die
Posto por L.C. à(s) 30.1.06 0 comentários
«Trindade Coelho viria a dar à estampa em 1891 «Os meus amores». Como delegado [do procurador régio] em Lisboa lá alinhavaria em 1897 um pequeno livro de ajuda aos recursos finais em processo criminal. A obra não terá excesso de mérito, mas tem, pelo menos, este momento irónico no seu prefácio em que diz que, ao escrever, "não citei acórdãos, como é de uso, por uma razão: porque preferi argumentar com a lei à vista, que é sempre a melhor maneira de argumentar"».
José António Barreiros, in Patologia Social
[Achado na caixa de correio]
Posto por L.C. à(s) 30.1.06 0 comentários
«Ao Procurador-Geral caberá “dirigir, coordenar e fiscalizar” a actividade do Ministério Público – ou seja, dirigir o exercício das respectivas funções por parte de todos os magistrados. A questão do exercício dos poderes hierárquicos próprios do Procurador-Geral da República assume porém características algo específicas. Não apenas devido ao grau de autonomia individual que é conferido por lei aos magistrados do Ministério Público, mas também por força da sua organização “descentralizada” e da existência de hierarquias intermédias consabidamente apanágio desta magistratura. Importa pois que a acção do Procurador-Geral da República, no tocante à direcção da actividade do Ministério Público, se concentre nas tarefas de superior fiscalização da mesma e de uniformização de procedimentos a seguir pelos magistrados. Em termos tais, que será nas áreas em que o Procurador-Geral tenha previamente formulado orientações, susceptíveis de se sobreporem à liberdade de organização e decisão, dos seus subordinados, que se deverá fazer sentir, como regra, o peso dos poderes de superior direcção do Ministério Público que lhe estão confiados. E isto nem sempre é correctamente entendido»
Intervenção do Procurador-Geral da República na cerimónia de abertura do Ano Judicial 2006
[Achado na caixa de correio]
Posto por L.C. à(s) 30.1.06 0 comentários
Posto por Simas Santos à(s) 30.1.06 0 comentários
«Nos processos judiciais mantém-se ainda o sistema "medieval" de não se oferecer de forma legível a identificação do magistrado titular dos processos. Prefere-se, assim, deixar aos destinatários e leitores de cada decisão a ingrata tarefa de decifrar as hieroglíficas assinaturas dos magistrados, como se estas fossem obra de arte que todos devessem culturalmente conhecer e reconhecer.»
Wladimir Brito, RMP 104
Posto por L.C. à(s) 29.1.06 0 comentários
Tirado da caixa de correio:
«O deputado Duarte Lima defendeu anteontem o fim das escutas telefónicas para todos os crimes que não os de terrorismo, droga e sangue. Quer ainda alterações na composição dos Conselhos Superiores que vão no sentido de uma maior politização. A sua intervenção foi aplaudida por todas as bancadas parlamentares, com excepção da do PCP, recebeu os "parabéns" da bloquista Ana Drago e elogios à sua "eloquência", "sapiência" e "coragem" do deputado do PS Ricardo Rodrigues. Os deputados são eleitos para defender ideias de organização do Estado e do País, seja pelas opiniões ou pelas leis. Duarte Lima cumpriu, por isso, o seu papel. O que é lamentável é que as suas opiniões tenham suscitado tamanho coro de aplausos. É completamente irresponsável, para não dizer pior, que deputados do PS, PSD, CDS e BE tenham aplaudido uma intervenção que exclui do catálogo de escutas crimes como a corrupção, branqueamento de capitais, tráfico de influências e peculato. Não se compreende como é que deputados de partidos que estão ou estiveram no poder podem defender políticas contra a criminalidade económico-financeira, subtraindo ao Estado um instrumento essencial para a combater. É vergonhoso que o Parlamento aplauda a afirmação de interesses particulares sobre o interesse geral»
Eduardo Dâmaso, DN de 28Jan06***
«Falando a título pessoal, o deputado social-democrata Paulo Rangel frisou ao DN que não aplaudiu o discurso do seu colega de bancada (...). "Os aplausos mais pareciam um ajuste de contas [com os magistrados]", disse Rangel, criticando o "júbilo tumultuoso" com que os deputados receberam as palavras de Lima. "Aquele não é um clima de democracia sã. É uma atitude para afundar a Justiça e não para uma reforma positiva e construtiva."»
DN de 28Jan06
Posto por L.C. à(s) 29.1.06 1 comentários
Sinto-me bem nesta cadeia. É um belo edifício claro, em pavilhões de dois andares, isolados no meio duma grande cerca arborizada, que um alto muro separa, julgo eu, de caminhos e terras cultivadas. Nenhum rumor chega de fora. Às vezes, vou até junto desse muro, que a hera muito densa envolve de poesia, e, numa sombra repousante e fresca, abandono-me a ouvir os pequenos murmúrios da terra e do ar - uma folha que tomba, um pássaro que tila, um insecto que zumbe, um gorgolejo de água - e assim levo muitas horas do meu dia, meditando e escrevendo, como os frades antigos, até que um toque de sineta me venha chamar para a comida ou para o recolher.
Tudo me parece raro, novo e extraordinário. Só agora descubro o oculto sentido de muitas coisas - e mais pela emoção que me provocam do que pelos juízos que formulo. Assim, depois dos meus erros e crimes, pergunto a mim mesmo se será legítimo viver com tanta calma e despreocupação: um criminoso não deveria ter dores, ser torturado? A punição é apenas isto?
Sim, tenho há muito a impressão de que vivo num sonho. A vida corre com uma serenidade impressionante. Penso quanto, noutro tempo, eram felizes os homens a quem se concedia o direito de fugir, como eu fugi, afinal, à vida angustiosa do mundo. Quase me julgo feliz. E porque não?
A cadeia não é como eu supunha, nem o que se diz lá fora. Nada nos falta, tratam-nos bem, embora vivamos numa quase completa solidão. Isto a mim agrada-me, de resto: aborreço o convívio dos homens. Só na aparência os considero meus semelhantes. Aqui, sou apenas um número: o 28.
Vejo agora quanto a criminologia tem progredido no sentido da mais ampla liberdade: cada qual faz o que quer - ou não faz nada. Muitos presos passam os dias metidos na cama. O trabalho deixou de ser obrigatório. A regeneração do criminoso obtém-se agora, ao que parece, por uma forma espontânea, a que eu, se dão licença, chamaria a "psicoterapia da indulgência".
Toda a casa é irrepreensivelmente asseada. O meu quarto é branco, limpo, tem um tecto alto e uma enorme janela sem grades, donde enxergo um vasto panorama de pinhais e terras de lavoura.
Não posso deixar de registar, no entanto, um facto muito estranho: às vezes, durante a noite (eu durmo pouco e tenho o sono leve), sobressalto-me ouvindo gritos, discussões, gemidos, um rumor de luta e de pancadas, e mesmo um estilhaçar de vidros... A primeira vez que tal aconteceu, cobri-me de suores e fiquei todo arrepiado. Receei que se aproveitassem da noite para nos aplicar um tratamento um pouco rude. Como tudo se calou, tornei a adormecer. O caso repetiu-se, e cheguei a julgar-me vítima de alguma ilusão. Porque gritavam? Intrigado, ergui- me várias vezes para escutar, mas acabei felizmente por me desinteressar do que se passa nesta grande casa de aspecto misterioso. São presos que se revoltam, ou que brigam, e a quem aplicam penas corporais? Não sei. Renuncio a sabê-lo. Ninguém me dá, nem eu peço, explicações. Nada me importa, os outros não existem para mim... Que façam como eu: calo-me, obedeço, vivo tranquilamente. De que serve a liberdade? Livre, o comem corre ao precipício.
Outro facto que de começo me indispôs: não me deixam ler os jornais, nem mesmo os antigos, onde poderia encontrar certos dados cuja falta me perturba.
Que terá dito de mim a grande imprensa?
Não tenho notícias do que vai pelo mundo. Não sei mesmo onde me encontro. Vivo como um cenobita.
Isto é bom.
O que desta gente me separa é o receio de ser diferente, um outro.
Oh, este horror de sentir a realidade fugir sob os meus próprios passos! Trabalhosamente, recomponho o "Eu", que a presença dos outros dissipa e confunde.
Isto é claro e horrível... Muitas vezes, subitamente, parece que deixo de ser eu, e a própria ideia do meu crime se obscurece, o meu passado é outro, como se uma força poderosa me arrastasse para um novo plano da existência. Então, fujo e luto comigo, a sós, desesperado.
O isolamento e a calma da prisão permitem-me pensar melhor e ordenar tantas recordações. Embebido em mim mesmo, sinto arder, mais vivo, o meu poder de concepção, e ainda espero compor alguns volumes de análise introspectiva. Vou meter o Nietzsche num chinelo.
Penso às vezes com piedade na insensatez dos que lutam apaixonadamente pela vida livre; chego a rir do meu próprio passado, eu, que já me deixei arrastar pelo remorso e pela dor. Agora sinto-me perfeitamente sereno. Não imaginam o que isto representa para mim! Estou sentado a escrever; sinto um sopro de Primavera vir de fora, pela janela aberta, nos raios do sol, e ouço na cerca o ramalhar das árvores cobertas de verdura nova, que o vento acaricia brandamente. Vozes... Também um sentimento novo de alegria me agita o coração.
Toda a gente aqui tem, para mim, deferências impressionantes. Só alguns dos companheiros, pobres náufragos que passeiam como eu na cerca, parecem querer às vezes provocar-me. Que mal lhe fiz? Estranhos tipos a quem a clausura parece ter roubado o senso! Dizem coisas perfeitamente infantis e sem sentido; mas os guardas que nos vigiam levam-nos logo para longe de mim.
Não me admira que estejam loucos, se, como se julga, o isolamento produz graves afecções, mesmo em quem foi sempre equilibrado. Sim, a solidão é um privilégio de raros, o domínio dos fortes! Uns aproximam-se para me fazerem confidências absurdas ou monstruosas. Um declarou chamar-se Ivânov e ser domador de leões: é um pobre raquítico, que mal tem nas pernas. Outro jura-me ser o Imperador Guilherme, e estar aqui esperando que o Hindemburgo o venha buscar para tomar Paris de assalto. Provavelmente são as alcunhas que outrora lhes deram, e com as quais as suas imaginações sobreexcitadas compuseram lendas... Outros insultam-me ou segredam-me obscendidades, aventuras de amor que são de arrepiar, ocorridas aqui dentro, com mulheres misteriosas que ninguém sabe donde vêm nem para onde vão. E há os que me fazem gestos lascivos ou provocadores, de longe, por entre as árvores da cerca. Volto-lhes as costas, com indiferença. Nem já sequer me causam piedade. Porque os não metem numa enxovia?
Recebo poucas visitas e, coisa estranha, não reconheço algumas das pessoas que se dizem das minhas relações. Interrogam-me, invocam nomes, datas, olham-me com espanto e curiosidade. Com franqueza, irritam-me. Às vezes trato-as mal. A impressão que me fica é de tê-las conhecido, sim, mas numa vida anterior de que me não resta lembrança viva... Há certos enigmas contra os quais luto em vão.
São talvez pessoas que se interessam pelo meu "caso": romancistas, quem sabe, ou psicólogos. Deixá-lo. Minha mulher também vem, às vezes na companhia de estranhos. Faz-me dó. Olha-me com tristeza e com receio, como se eu estivesse transtornado. Veste de escuro. Trabalha decerto para comer, e tem os olhos pisados. Agarra-se de repente a mim, a soluçar, e diz-me: "Lembra-te! Lembra-te!..."
Oh, meu Deus, estas cenas perturbam-me, e eu não posso, não posso mais! Sinto que perco o equilíbrio... Deixem-me só! Deixem-me só! Que queres tu que eu recorde? Porquê teimam todos que me lembre? Que me lembre - de quê? de quem?
Recebo-a, pois, sem nenhum entusiasmo. Imaginem que às vezes me vem surpreender num dia de inspiração ou de trabalho: procuro despachá-la o mais depressa que posso. As mulheres imaginam que nós devemos sacrificar os mais altos fins da existência às futilidades sentimentais, ou à recordação do que passou - do que deixou de ser.
Quero-me só com o meu presente. O passado não me importa. É bom adormecer com a certeza de que "amanhã" será uma coisa diferente. Porventura o eu de hoje continua o de ontem? O passado não existe, é uma ideia que alteramos a nosso gosto. Cada dia que nasce traz uma vida nova.
Entre nós tudo acabou. Tenho pena dela. Mas porque não se divorcia? As mulheres não compreendem certas coisas... Se encontrasse um marido honesto e dedicado, ainda podia ser feliz, e eu ficava contente. Como eu consigo já não ter ciúmes! E acreditem: estimo-a muito. Pobre Luísa!... É preciso ser puro. Mas ela não entende!
O director da cadeia é muito amável para mim. Não sei que lhe fiz. Tem comigo atenções que não posso esquecer. Anda sempre de bata muito branca. Interroga-me às vezes demoradamente, e já conseguiu reavivar- me a lembrança de certas coisas que eu julgava ter esquecido para sempre, talvez por serem tão banais. E fá-lo de tal modo que não me atrevo a resistir-lhe.
- Vês tu? - disse-me ontem de manhã, sentado na minha cama. - Já conseguiste recordar coisas bem sugestivas. Temos de continuar!
Prometi mostrar-lhe este manuscrito, logo que o tivesse acabado. (É a revisão do que levei ao tribunal.)
- Pois sim. Mas trabalha devagar. E escreve tudo - tudo!
- É impossível. Há coisas que eu não consigo esclarecer.
- Mas faz um esforço. Talvez eu possa ajudar-te. É para teu bem.
- Mas eu não quero sair daqui!
Acorda-me de noite, sem motivo aparente, para me fazer certas perguntas. Mostra-me retratos, conta-me incidentes que me parece ter já lido algures...
- Hás-de curar-te - diz. - Hei-de acabar por te restituir a memória completa de ti mesmo! - E de repente: - Quem era o Abílio?
Estremeço. O Abílio... Uma angústia indefinível:
- Espere! Espere! Eu lembro-me... Conheci um...
- Quem era? Onde vivia?
O Abílio... Eu sabia, eu sabia! Mas é impossível distinguir... Eu quero, mas há um muro que me separa não sei de quê... Uma angústia, como se dentro de mim um animal lutasse contra a minha vontade...
- Não posso! Não posso! Não quero...
Àquele simples nome, tudo se convulsiona em mim.
- Há um mês não conhecias este nome. Hoje conhece-lo?
- Conheço...
- Obrigado.
Obrigado - porquê? Que interesse tem ele nisso? Que lhe importa o que adormeceu cá dentro? Detesto que me façam perguntas.
Eu já sofri. Já fui um descontente, um revoltado, se quiserem. Hoje vivo serenamente. A serenidade é a maior virtude da inteligência. O que houve em mim foi um simples conflito dos meios e dos fins. Todo o meu drama se resume nisto. Não discutam se sou mau ou bom. Os actos são bons ou maus, não segundo a vontade, mas segundo os efeitos. E há fatalidades que nos impelem, através do mal, para um destino de beleza perfeita.
A ideia do mal faz-me pensar na Sociedade: estamos quites! Nada fez por mim, nada lhe devo, vivi à margem dela como um cardo à beira dum caminho. Também a não acuso. Não passa duma abstracção para que apela quem já nada espera de si mesmo... Não há senão indivíduos. (Verdadeiramente, só eu existo, eu e estes pensamentos.) E todos exigimos dela alguma coisa!
Mas porque hei-de eu pensar no mundo? É um hábito que fica. Detesto a vida activa! Os gestos que faço, os passos que dou, perturbam-me a vida interior, que é o meu prazer. Esquecimento, quietação! Doutro, não me olhe assim! Não me pergunte mais nada!... Tenho amor a esta casa onde adquiri a certeza definitiva de que existo, porque penso.
Nesta hora solene em que revejo, comovido, a minha biografia, para que hei-de mentir? Eu sou o "homem que obedeceu".
Não me considerem pois um criminoso.
José Rodrigues Migueis, in Páscoa Feliz, 5ª edição, Editorial Estampa - Lisboa 1981
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Posto por Anónimo à(s) 28.1.06 2 comentários
Posto por Simas Santos à(s) 27.1.06 0 comentários
Começa a corrida para a sucessão do juiz conselheiro José Moura Nunes da Cruz no cargo de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
A primeira candidatura virá do norte, anunciada ontem num jornal de Braga. Descubra aqui.
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A convite da Associação Forense de Santarém tivemos ontem a oportunidade de ouvir a defesa daquela Lei-Quadro feita pelo seu principal obreiro, o Presidente da Unidade de Missão, Mestre Rui Pereira.
Coincidência arreliadora – a Assembleia da República aprovava-a nesse momento, diz a Lusa, com os votos favoráveis do PS e CDS/PP, a rejeição do PCP e Verdes e a abstenção do PSD e BE.A primeira vontade era silenciar... e passar à frente. Mas o assunto não o merece, e nem a Assembleia da República pode tolher a liberdade de crítica.
Na verdade, passando em revista com mais detalhe a dita lei, crê-se serem pertinentes vários reparos (entretanto muitos já feitos, mas sem resultado):
1. É mais que duvidosa a sua legitimidade constitucional, não se percebendo como é possível encontrar fundamento no artigo 219º da CRP, onde apenas se prevê que o Ministério Público participe “na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania” (estender a noção de política criminal às prioridades da investigação criminal parece completamente fora do que tem sido entendido por política (legislativa) criminal).
2. Mas acima de tudo o que se detecta é um atentado flagrante ao princípio da separação de poderes. Ao Poder Judicial, por forma indirecta – já que ao condicionar a actuação do MP se está a filtrar, por meio de um camuflado princípio da oportunidade, este não previsto na lei, a intervenção do Poder Judicial. De forma directa, ao Poder Executivo, como órgão superior da administração, a quem cabe conferir condições e meios para que a Justiça faça cumprir as leis. E nada adianta invocar que seja o próprio Executivo a tomar a iniciativa da lei.
3. Não é aqui oportuno analisar cada um dos breves artigos que compõem o texto, mas não se resiste à menção de algumas incoerências ou hipocrisias: diz-se que compete ao Governo propor à AR “resoluções sobre os objectivos, prioridades e orientações de política criminal” (artigo 7º) – afirmação para que não se encontra fundamento – mas antes disse-se que isto não prejudica “o princípio da legalidade, a independência dos tribunais e a autonomia do MP” (artigo 2º) – afirmações, com o devido respeito, de fachada; que em relação à pequena criminalidade se podem definir tipos de crimes relativamente aos quais se aplicará a suspensão provisória do processo, o arquivamento com dispensa de pena, etc., para se acrescentar que isso não impede uma verificação casuística pelas “autoridades judiciárias competentes” (então quem houvera de fazer a análise? resultaria ope legis, directamente para o arquivo sem passar pelo MP?); que o MP conserva a sua autonomia – como se frisou – mas que assume os objectivos e adopta as prioridades e orientações constantes da AR (artigo 11º) – e se resolve não assumir?; que a avaliação das prioridades é feita com base em relatórios paralelos do Governo (leia-se Ministério da Justiça) e do PGR, podendo este ser ainda chamado à AR para “esclarecimentos” acerca do seu relatório.
4. Aquilo que realmente nos parece resultar da lei é que o Ministério da Justiça “alija a carga”, pelo menos naquilo que lhe cabe de angariação de meios e melhoria da organização subjacente à investigação criminal, abrigando-se debaixo da umbela da AR, que por seu lado “despromove” o Procurador-Geral da República e no seu conjunto o Ministério Público.
5. A ineficiência dos OPC em face da pequena criminalidade – que é muita (81% ouvimos ontem) e pode ter razões as mais diversas - passa agora a gozar da chancela da AR, ainda que se venha a dizer, emendando o texto, que se devem evitar as prescrições, etc. (os processos “não prioritários” serão remetidos para o amontoado daqueles que aguardam que os ofendidos descubram os autores dos delitos ou, quando os descobrem, talvez mesmo se substituam aos OPC para fazer a formalização atempada da investigação).
6. Uma lei desnecessária, um gasto de tempo que podia ser usado em tantas outras áreas e que no futuro vai potenciar mais conflitos do que clarificar situações. Aliás, não se sabe o que seria mais útil ao País, face a tanta descredibilização, na atitude do PGR.
Mas não há nada a fazer neste campo da operacionalidade do MP e dos OPC e mesmo das prioridades? É evidente que há e muito. Só que o caminho a percorrer era diferente e supunha que as entidades responsáveis por estas questões nacionais não vivem de costas voltadas. Este ambiente pernicioso, que tudo inquina, não pode ser ignorado.
A melhor organização, racionalização e reforço dos meios é essencial; como o é o reforço da formação e do apoio tecnológico, como o é a cooperação do MP com os OPC e o Governo, cada um na sua esfera de competência.
Para isto aquela Lei-Quadro era perfeitamente desnecessária: o MP/OPC terão de ser mais eficazes, o Governo tem de apoiar e a AR lá está para fiscalizar, desde logo e em primeira linha o Governo.
Oxalá nos enganemos, mas a dita Lei-Quadro introduziu mais um factor no “quadro” da perturbação na administração da Justiça.
Foi esforçada mas não convincente a defesa da lei feita pelo douto Presidente da Unidade de Missão para a Reforma Penal, que outrossim demonstrou muito fair play.
Posto por Anónimo à(s) 27.1.06 0 comentários
Posto por Simas Santos à(s) 25.1.06 0 comentários
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