quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

As Escutas e as Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça

Como contributo para a discussão sobre as escutas em processo penal, pensamos ser de todo o interesse divulgar aqui os parágrafos que os Juízes Conselheiros das Secções criminais do STJ lhe dedicaram num texto de reflexão destinada à reforma, que então se ensaiava (e que continua na ordem do dia), do processo penal, texto disponível em texto integral em www.verbojuridico.net.
*
I - Regime das escutas telefónicas
1. Artigos implicados: 187º, 188.º e 189º
Artigo 187º (Admissibilidade):
1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz, quanto a crimes: a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; b) Relativos ao tráfico de estupefacientes; c) Relativos a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas; d) De contrabando; ou) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone, se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
2 - A ordem ou autorização a que alude o n.º 1 do presente artigo pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes: a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada; b) Associações criminosas previstas no artigo 299.º do Código Penal; c) Contra a paz e a humanidade previstos no título III do livro II do Código Penal; d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo I do título V do livro II do Código Penal; e) Produção e tráfico de estupefacientes; f) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º, do Código Penal; g) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime.

Artigo 188º (Formalidades das operações)
1 - Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, com indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova.
2 - O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
3 - Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 101.º, n.ºs 2 e 3.
5 - O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição a que se refere o n.º 3 para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias dos elementos naquele referidos.

Artigo 189.º(Nulidade)
“Todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade”.

2. Matérias Problemáticas
2.1. Dúvidas têm incidido sobre a interpretação a dar ao termo “imediatamente”, mencionado no n.º 1 do artigo 188º.
Disse-se no ac. do STJ, de 30.03.00- P.º 1145/98- 5.ª:
“O sentido a dar a este advérbio "imediatamente", não tem conhecido na Jurisprudência um entendimento unívoco ( cfr. a título de exemplo, o Ac. da RL de 16/03/96, CJ, Ano XXI, Tomo 4, p. 155)....
Em ordem a fixar-se a sua exacta significação, torna-se prioritário concatená-lo na perspectiva teleológica e sistemática do próprio preceito.
Como já ficou enunciado no acórdão deste Supremo Tribunal de 14/11/1996, proferido no processo n.º 48588, o auto a que se refere o n.º 1 do art.º 188 do CPP, destina-se, tão somente, a dar fé à operação de intercepção enquanto tal (no mesmo sentido, conferir o Ac do STJ de 29/10/1998, proferido no processo n.º 525/98).
Significa isto, que deverá mencionar, inter alia, o despacho judicial que ordenou ou autorizou a intercepção, a identidade da pessoa a que a ela procedeu, a identificação do telefone interceptado e os circunstancialismos de tempo, modo e lugar da intercepção.
Mas pergunta-se - e neste ponto se situa o fulcro da questão colocada - ­deverá esse auto referir o conteúdo das gravações, ou de uma forma mais incisiva, conter a transcrição das gravações?
A resposta tem que ser necessariamente negativa.
Na economia dos princípios acima enunciados e até como contraponto da relativa abertura conferida pelo nosso legislador no que respeita às escutas telefónicas, não é constitucionalmente pensável, ou admissível, um quadro do tipo do que deixamos esboçado, sem um verdadeiro controlo jurisdicional desse meio de obtenção de prova, garantindo a salvaguarda de direitos e liberdades e obstando a que eventuais situações perversas ou de atropelo possam ser geradas ou cometidas.
Foi o que expressamente veio a consagrar o Ac n.º 407/97, do TConstitucional, de 21 de Maio de 1997, publicado no DR - II S, n.º 164 de 13.07.1997, onde a determinado passo se poderá ler:

"Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional.
O actuar dessa imediação, potenciadora de um efectivo controlo judicial das escutas telefónicas ocorrerá em diversos planos (..) "
Porque assim é, a essencialidade dessa garantia não pode ficar dependente da existência ou não de meios humanos ou técnicos susceptíveis de num dado momento assegurar a imediatividade das transcrições, quer porque a esse nível a regra é a da insuficiência, quer porque na normalidade dos casos, o material a processar será relativamente extenso não podendo ser essa a interpretação a dar ao referido termo.
(...) O que de uma forma textual e expressa a redacção do mencionado n.º 1 do art.º 188 manda que seja entregue ao Juiz de Instrução (o seu primeiro destinatário) com o auto, não são as transcrições mas as próprias fitas gravadas.
A este propósito, aliás, e como o referem Simas Santos e Leal-Henriques
X, na linha do que vimos propugnando, a inclusão no referido auto do conteúdo da matéria interceptada seria um acto inútil, "uma vez que o juiz, por lei, tem imediato acesso às gravações através dos respectivos instrumentos de registo".

Porque as escutas telefónicas só foram presentes ao juiz alguns meses depois de terminadas, considerou-se não haver supervisão judicial atempada, e verificada uma situação de proibição de prova, com anulação de todo o processado a partir da pronúncia.
Naquele citado ac. do TConstitucional julgou-se inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32º da CRP, a norma do n.º 1 do artigo 188º do CPP quando interpretada em termos de não impor que pelo autor da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefóni­cas seja, de imediato, lavrado auto e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente o que se mostrar conveniente.
O TConstitucional preconiza uma “exigente leitura à luz do princípio da proporci­onalidade, subjacente ao artigo 18º, n.º 2, da Constituição, garan­tindo que a restrição do direito fundamental em causa (de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa, possa afectar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente”.
“Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional”.
“De forma alguma “imediatamente” poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz não resulta do processo (...)”
[1].
No intuito de “salvar” elementos probatórios que se revelam essenciais na perspectiva acusatória, a interpretação do advérbio “imediatamente” é alvo de variadas acepções, uma delas por exemplo a entender que será ainda uma apresentação imediata ao juiz aquela em que não haja entre a escuta e tal apresentação (do auto e das fitas gravadas ou elementos análogos) a prática de qualquer acto processual. Interpretação esta logo arredada pelo Supremo Tribunal.
2. Nulidade/Irregularidade
Também a caracterização dos vícios a que se refere o artigo 189º vem sendo objecto de soluções divergentes: uma delas, no sentido de uma apertada interpretação do preceito de modo a abranger todas as formalidades; outras, fazendo distinções.
2.1. Tendência forte da jurisprudência vai no sentido de que existe nulidade insanável se não for colhido despacho judicial de autorização das escutas telefónicas ou se estas se prolongarem para além do período fixado ou depois de conhecido o despacho que ordene o seu término.
Tratar-se-á mesmo de um método proibido de prova – artigo 126.º, n.º 3, do CPPenal:“ são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada ...ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
Mas quanto ao incumprimento de outras formalidades, nomeadamente a não apresentação imediata ao juiz, do auto lavrado junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, parece minoritária a posição que considera linearmente que a violação de “todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade”, entendendo o termo nulidade como nulidade insanável.
Diz-se no acórdão do STJ, de 30.03.00 – P.º n.º 1145/98:
“O auto a que se refere o n.° 1 do art.º 188.º, destina-se a dar fé à operação de intercepção enquanto tal, devendo mencionar, inter alia, o despacho judicial que ordenou ou autorizou a intercepção, a identidade da pessoa a que a ela procedeu, a identificação do telefone interceptado e os circunstancialismos de tempo, modo e lugar da intercepção. Dado que as escutas telefónicas "são portadoras de uma danosidade social polimórfica e pluridimensional", não é constitucionalmente admissível que as mesmas possam ser realizadas fora de um quadro de verdadeiro controlo jurisdicional que garanta a salvaguarda de direitos e liberdades, e que obste a que eventuais situações perversas, ou de atropelo, possam ser geradas ou cometidas. Porque assim é, a essencialidade dessa garantia não pode ficar dependente da existência ou não de meios humanos ou técnicos susceptíveis de num dado momento assegurar a "imediatividade" das transcrições, quer pelas insuficiências existentes a esse nível, quer porque na normalidade dos casos, o material a processar ser relativamente extenso.
No acórdão da RPorto, de 8.03.2000
[2], afirma-se (sumário):
“3 - A proibição de escutar as conversas telefónicas do arguido com o seu defensor não se aplica apenas a partir do momento em que aquele junta aos autos a respectiva procuração forense; tal proibição abrange também o período em que o advogado, embora sem representação, exerce o mandato de o defender.
4 - O juiz, embora não tenha que proceder pessoalmente às escutas telefónicas, tem que acompanhar as mesmas, temporal e materialmente, de forma contínua e próxima, a fim de, em função do decurso das mesmas, manter ou alterar a autorização que deu para a elas se proceder.
5 - É o juiz - e só ele - quem, de entre os elementos probatórios recolhidos através das escutas telefónicas, há-de decidir quais é que, por serem relevantes para a investigação, devem ser transcritos em auto, a juntar ao processo.
6 - As provas obtidas mediante escutas telefónicas com violação dos art.ºs 187.º, n.ºs 1 e 3, e 188.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, designadamente por estas terem sido feitas depois de o juiz ter revogado a autorização dada, são nulas, porque proibidas”.

Não será de surpreender que uma interpretação mais próxima da letra do preceito do artigo 189º, em consonância com o n.º 1
[3] do artigo 118º e o artigo 119º[4], se venha a tornar maioritária.

2.2. Entretanto, porém, vários espécimes jurisprudenciais apontam no sentido de que a violação de certas regras a observar no domínio das escutas telefónicas acomoda-se na categoria das irregularidades sanáveis pela oportuna falta de arguição.
Disse-se no ac. do STJ, de 15.03.00
[5]:
“Não resulta pois dos autos qualquer incumprimento dos requisitos e condições referidos nos citados arts. 187° e l88°, designadamente daqueles cuja falta foi arguida e que estamos apreciando, relativos à garantia da possibilidade de contraditório por parte do ora recorrente.
E mesmo que algum destes pressupostos formais tivesse porventura sido desrespeitado, ....a nulidade que daí derivaria (art. 189° do C.P.P.) não seria de conhecimento oficioso, por não ser insanável (arts. 119° e 120° do C.P.P.), já que não se trataria de omissão de pressupostos materiais exigidos pelo art. 187° como indispensáveis à produção do meio de prova das escutas telefónicas, designadamente o terem sido autorizadas por despacho do Juiz, e cuja falta implicaria a nulidade da prova, por força do art. 126°, n° 1, de aplicação ressalvada pelo art. 118°, n° 3, todos do C.P.P.
x 3. Ora, tratando-se de nulidade sanável, seria de concluir que não tinha sido atempadamente arguida (art. 120° do C.P.P.),
E no ac. de 17.01.01
[6]:
“(...) Reparemos na redacção originária do artigo 188º para melhor compreender as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.(...)
“Na interpretação
[7] de tal sistema sublinhava-se a influência que as leis e a jurisprudência estrangeiras haviam tido nos textos nacionais.
Em França, entendia-se que o funcionário de polícia judiciária controlava “o registo das conversações telefónicas em banda magnética ou cassete, tal como a sua transcrição se ele próprio a não realizar, e que na escolha dos extractos a submeter a exame de jurisdição lhe cabe determiná-los, com sujeição a sanções penais, e que ele realiza todas essas tarefas sob a responsabilidade e controlo do juiz de instrução”.
A doutrina italiana salientava que só os documentos fónicos e os autos assumem relevo probatório, visando-se com a transcrição permitir o controlo das operações de escuta telefónica pela defesa....
De qualquer modo, a junção ao processo ou a guarda nos termos do artigo 101º, n.º 3, do CPPenal, das "cassetes" ou das bandas magnéticas cujo conteúdo haja sido transcrito permite aos intervenientes, ao arguido e assistente, fazer o controlo da sua conformidade com a transcrição efectuada (e também da própria conformidade com as regras de recolha da prova).
A indicação desta posição doutrinária assume relevo na medida em que se diz ter sido tomada em conta na actual redacção do preceito
** ”.

E já em face das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, acrescentava-se, a propósito das formalidades a que se refere o artigo 188º:

“Para além de a intercepção e gravação da comunicação telefónica estar sujeita a ordem ou autorização judicial, sob pena de nulidade insanável, como é geralmente entendido – o que bem se compreende pela delicadeza desta recolha de meio de prova -, as restantes operações de audição, eventual transcrição, e destruição de elementos desnecessários, correm igualmente sob estrito controlo do magistrado judicial.
Por razões de eficiência e dos necessários meios técnicos e humanos disponíveis, as operações materiais de intercepção e gravação correrão normalmente a cargo da Polícia Judiciária como entidade competente para a investigação criminal – n.º 2 do artigo 187º do CPP e artigo 18º da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho. Daí não se recolhe, porém, a ideia de que lhe cabe seleccionar os elementos a juntar aos autos. Tal poder reside na esfera de competência do magistrado judicial.
No entanto, as alterações levadas a efeito pela Revisão de 98 do CPPenal espelham com suficiente clareza o objectivo de ultrapassar dificuldades práticas provenientes da necessidade de audição, pelo magistrado judicial, de todo o “material gravado”, da selecção e ordem de transcrição dos excertos com interesse probatório a juntar aos autos.
Parece-nos ter ficado claro que o texto resultante da Revisão de 98 pretendeu evitar transcrições de gravações que se revelassem inúteis para efeitos probatórios; que é o juiz quem ordena a transcrição, quando necessária, o que supõe, obviamente, que alguém deve proceder à audição dos elementos gravados para efeito de aquilatar da sua relevância processual
*.
Ora, o novo preceito do n.º 4 do artigo 188º confere ao magistrado judicial, quando o entender conveniente, que seja coadjuvado por funcionários do órgão de polícia criminal, o que lhe concede uma ampla margem de manobra funcional. Isto em busca da praticabilidade do sistema, o que também implica subtrair o magistrado à audição intensiva de gravações sem o menor interesse probatório, salvaguardadas as garantias essenciais do cidadão suspeito de actividades criminosas.
A nosso ver, podia o juiz proceder à audição ou decifração directa das fitas gravadas ou material análogo ou pedir a coadjuvação do OPC para esse efeito a fim de, sob seu controlo, efectuar essas operações, dando-lhe este conta, pela forma que entendesse mais ajustada (o que inclusivamente poderia ser fixado em despacho constante dos autos), do resultado dessa audição. Nada obstava, pois, a que o juiz ordenasse a audição da gravação pelo funcionário do OPC, sugerindo-lhe este, depois, as passagens relevantes para efeito probatório.
Embora se reconheça que a interpretação mais linear do regime legal, apesar da coadjuvação que o magistrado judicial pode solicitar ao órgão de polícia criminal, seja a da audição das fitas gravadas, quando é o caso, pelo próprio magistrado
***, eventualmente em conjunto com o funcionário, ordenando de imediato a transcrição dos excertos que considere de interesse probatório.
No fundo, uma interpretação que se mostra agora mais clarificada pela alteração do n.º 1 do citado artigo 188º do CPPenal levada a efeito através do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, evidentemente não aplicável de forma directa ao caso...
O que supõe, declaradamente, a audição prévia pelo funcionário do OPC.
Não se pode esquecer que para além das normas relativas ao sigilo (artigo 383º do CPenal), sobre o funcionário recaem outros deveres derivados do seu ofício cuja violação pode implicar igualmente responsabilidade não só disciplinar como criminal – especialmente pela prática dos crimes, de falsificação a que se refere o artigo 256º, n.ºs 1 e 4 do CPenal, ou de abuso de poderes ou violação de deveres inerentes às suas funções (artigo 382º).
Por outro lado, dúvidas que se suscitem ao juiz quer perante a sugestão quer pelo texto da transcrição tem sempre a possibilidade de confrontar a gravação e ordenar o que se mostrar adequado. O próprio funcionário pode ter dificuldades na transcrição, a superar segundo a instrução judicial.
Para além de tais garantias, a última das faculdades de controlo cabe ao arguido e ao assistente, bem como às pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, examinando o auto de transcrição para se inteirarem da sua conformidade com as gravações e da própria fidedignidade destas, designadamente quando na transcrição se faz a atribuição do conteúdo de uma determinada comunicação a certa pessoa”.

E já sobre a aplicação dos princípios ao caso concreto:

“O procedimento mais correcto, nessa altura, como o será hoje, já que estamos em face da aplicação de dois regimes, o anterior e o posterior a 1998, vai no sentido de não haver transcrições que não sejam ordenadas pelo magistrado judicial (hoje podem sê-lo, sob sugestão do OPC). (...)
Assim, os despachos de junção..., proferidos a posteriori das transcrições, não transportam uma correcta observância da lei, enfermando por isso de nulidade.
Só que, ..., a nulidade verificada, prevista nos artigos 188º e 189º é sanável, sujeita ao regime de arguição a que se referem os artigos 120º e 121º do CPPenal, como aliás preconiza a generalidade dos anotadores do Código de Processo Penal”.

Numa posição ainda mais flexível seguia o acórdão de 16.08.96
[8]:
A exigência, estabelecida no n.º 1 do art. 188º do CPP, de que o auto e as fitas gravadas, ou elementos análogos, devem ser "imediatamente" levadas ao conhecimento do Juiz que tiver ordenado, ou autorizado, as operações, deve ser entendida no sentido de "no tempo mais rápido possível" e o seu desrespeito poderá, eventualmente, dar lugar a um pedido de aceleração ou a procedimento disciplinar, mas nunca a uma nulidade.
Aspectos menores não deixam de subir à apreciação em recurso
[9]:
“O CPP não exige a transcrição das gravações em discurso directo; a circunstância de a transcrição ter sido feita no discurso indirecto não constitui a prática de uma nulidade e não se traduz numa diminuição das garantias de defesa dos arguidos”.

3. Do que se deixa exposto, ficará suficientemente explícito que o sistema de escuta e gravação necessita de ser revisto e pormenorizado em alguns pontos, conferindo-lhe salvaguardas que tenham em conta a sua natureza excepcional de meio de investigação.
Não entramos no plano da amplitude das escutas, nomeadamente se são permitidas, mesmo em face do regime vigente, quanto a pessoas sobre as quais não incida uma suspeita mínima de prática de crime, salvo evidentemente se for interlocutor do titular de meio de comunicação que se encontra legalmente sob escuta. Na verdade, não existe ainda jurisprudência sobre tais casos concretos.
Por certo que urge outrossim a adopção de normas mais precisas sobre o disposto no artigo 190.º do CPPenal, no que toca a “comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática”, tendo mesmo em conta toda a problemática que decorrerá da ratificação da Convenção do Conselho da Europa sobre a Cibercriminalidade, assinada em Budapeste, em 23.11.01, também por Portugal, na qual as medidas de processo penal constituem o leit motiv da Convenção.
Medidas que serão aplicáveis não só às infracções penais previstas na Convenção (a dita cibercriminalidade), como a toda a infracção cometida por meio de um sistema informático e à colheita de provas electrónicas de qualquer infracção.
X Código de Processo Penal Anotado, (2ª Edição), I Volume, p. 936.
[1] V. também, no mesmo sentido, o ac. do TConstitucional n.º 347/01, de 10.07.01, no DR, II Série, de 9.11.01.
[2] Publicado in CJ, Ano XXVIII, T2, p.227.
[3] Em que se dipõe: “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
[4] “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”, como se refere no texto.
[5] P.º n.º 14/2000- 3.ª.
x Neste sentido, cf., v.g., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 11.ª edição, p. 411, e Simas Santos-Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, p. 942.
[6] P.º n.º 2821/00, publicado na CJ, Ano IX, Acs. STJ, Tomo I, 2001, p. 210,
[7] Parecer da PGR n.º 92/91 (complementar), de 9.04.92, na BD PPGR/ITIJ (Internet).
** Cfr. J. L. Lopes da Mota, “A Revisão do Código de Processo Penal”, in RPCC, Ano 8.º - 2.º, Abril-Junho 1998, p. 189, especialmente nota 37.
* Pretendeu-se clarificar quem selecciona os elementos a transcrever em auto, “o que deve ser ouvido pelo juiz (de modo a evitar transcrições morosas, onerosas e inúteis)” – RPCC, loc. citado.
*** Como se entendeu no ac. do STJ, de 30.03.00 – P.º n.º 1145/98 – in Sumários de Acórdãos, n.º 39, Março 2000, p. 73 – onde se afirma que compete ao juiz ouvir as gravações e depois determinar ou não a sua transcrição.
[8] Da Relação de Lisboa, CJ, Ano XXI, T4, p.155.
[9] Acordão do STJ, de 14.11.96 – P.º n.º 48588.

Justiça Constitucional

Apoio judiciário - pedido de apoio judiciário formulado - dever de informar o tribunal pelo requerente
.
Não é inconstitucional o artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, na interpretação de que compete ao requerente do apoio judiciário informar o tribunal do pedido de apoio judiciário formulado.
.
Ac. n.º 57/06 de 18-01-2006, proc. n.º 809/04, 2.ª Secção, Relator: Cons. Paulo Mota Pinto

Casa da Suplicação LIX

Jurisprudência fixada - afastamento por parte dos tribunais judiciais - fundamentação - razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada
1 - A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do art. 445.º do CPP).
2 – Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (art.ºs 97.º, n.º 4, 374.º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.
3 – Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais judiciais, da jurisprudência fixada, pudesse gerar uma “fiscalização difusa” da jurisprudência uniformizada (art. 446.º, n.º 3 do CPP).
4 - Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia: haver “razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada” (art.ºs 446º, n.º 3 e 447.º, n.º 2, 1.ª parte do CPP), as únicas razões, pois, que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.
5 - Isso sucederá, v.g. quando:
– o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;
– se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,
– a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juizes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.
7 - Mas seguramente não sucederá quando o Tribunal Judicial não acata a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a “solução legal”.
Ac. do STJ de 26.01.2006, proc. n.º 181/06-5, Relator: Cons. Simas Santos


Decisão final de tribunal colectivo - recurso para a Relação - opção do recorrente - medida concreta da pena - matéria de direito
1 – Sobre a questão de saber qual o tribunal competente para conhecer do recurso da decisão final do tribunal colectivo em recurso que visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, quando o recorrente se dirigiu à Relação e não ao Supremo Tribunal de Justiça, definiram-se duas correntes no Supremo Tribunal de Justiça: uma entendendo que é então competente e outra entendendo que é válida a opção feita pelo recorrente.
2 – Esta última posição parte da consideração de que a Revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, não acolheu o entendimento de os recursos de decisões finais do tribunal colectivo restritos à matéria de direito têm de ser necessariamente dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça e por este conhecidos, por falecer competência para tal às Relações.
3 - Na verdade, a possibilidade de recurso directo para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito [al. d) do art. 432.º do CPP], não impede a Relação de conhecer dos recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, restritos ao reexame de matéria de direito (no dizer do art. 411°, n.º 4 do CPP).
4 - Com a Revisão efectuada pela Lei n.º 59/98:
– Foi consagrado o recurso das decisões de 1.ª instância para a Relação como regime-regra, apenas com a excepção do recurso directo para o Supremo das decisões finais do Tribunal do Júri, excepção que não abrange o recurso per saltum para o STJ quando se impugnam decisões extraídas pelo tribunal colectivo (art. 427.º do CPP);
– Reconheceu-se o princípio de atribuir às Relações competência para conhecer dos recursos restritos à matéria de direito, mesmo que se trate de recursos de decisões finais do Tribunal Colectivo (cfr. art. 414, n.º 7 e 428.º, n.º 1 do CPP);
– Com o intuito de aproximação de tal regime com o que está concebido para o processo civil, significativo da ideia de harmonização de sistemas que se completam;
– Abriu-se um caminho processual que propicia a possibilidade de discussão, sem limites, dos vícios referidos no n.º 2 do art. 410.° do CPP, e viabiliza um efectivo 2° grau de recurso;
– Transferiu-se para a tramitação unitária (comum às Relações e ao Supremo), da disposição, anteriormente exclusiva deste último, que previa a possibilidade de alegações escritas nos recursos restritos à matéria de direito (anterior art. 434.°, n.º 1 e actual art. 411.º, n.º 4, do CPP).
– Consagrou-se o recurso per saltum das decisões finais do Tribunal Colectivo restrito à matéria de direito, como expediente impugnatório que, como o próprio nome indica, permite que se salte sobre o tribunal normalmente competente, o que pressupõe que o tribunal ultrapassado (no caso a Relação), tem também essa competência.
5 – Embora esteja muito divulgada a posição de que a questão da medida da pena, mesmo da medida concreta da pena é sempre exclusivamente de direito, tal não é exacto.
6 – Em matéria de medida concreta da pena, enquanto que ao STJ só assistem aqueles poderes de cognição, as Relações podem proceder a um reexame mais amplo, e eventualmente avaliar diversamente o significado da matéria de facto, quer em relação a cada parâmetro, quer em relação à imagem global do facto e da personalidade do agente, invadindo a margem de liberdade que, no nosso direito, assiste ao julgador na medida da pena e fixando, dentro dela, nova quantificação precisa, ou seja nova pena.
7 – Se o recorrente sustenta que se verificou erro de direito na decisão da 1.ª instância, mas também sustenta que ocorreu incorrecta valoração das atenuantes, coloca –se também no domínio do facto, o que vale por dizer que nem sequer se pode afirmar com firmeza que o recurso visa exclusivamente matéria de direito.
Ac. do STJ de 26.01.2006, proc. n.º 273/06-5, Relator. Cons. Simas Santos