terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

casa da Suplicação LXIV

Recurso Extraordinário de Revisão – Inconciliabilidade de factos provados
1 - A inconciliabilidade entre factos que tenham sido considerados na decisão revidenda e numa outra decisão tem de materializar-se numa contradição entre factos provados, como decorre claramente da proposição normativa: os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença -, e não entre factos provados e factos não provados.
2 - Na verdade, só existe verdadeira contradição para o efeito que aqui interessa, entre factos provados que se não conciliem. Só a contradição daí resultante é capaz de gerar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, como sucederá, por exemplo, se numa decisão se der como provado que A matou B e noutra se tiver dado como provado que a morte de A resultou da sua queda involuntária num precipício. Já o mesmo não sucede se num processo se tiver dado como provado que A matou B e noutro tiver ficado não provado que a morte de A resultou de uma acção de B.
Ac. do STJ de 16/2/06, Proc. n.º 99/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa


Recurso para o STJ – decisão que não põe termo à causa – violação de caso julgado
Se a decisão recorrida não se prende com a decisão de fundo e, portanto, com a matéria da causa, sendo uma questão meramente instrumental, processual, encontrando-se aquela já decidida e se a decisão da causa não admite recurso para o STJ, por se tratar de crime punível com pena de prisão ater três meses ou multa, também a não há-de admitir a decisão de uma questão (adjectiva) que se não prende com o fundo da causa, ainda que com fundamento na violação do caso julgado.
Não prevendo a lei processual penal o recurso com fundamento autónomo na violação de caso julgado, não se está perante uma lacuna que fosse necessário colmatar por recurso às normas do processo civil, mas perante uma opção do legislador.
De resto, quanto à decisão da causa objecto do processo, o trânsito em julgado (o designado caso julgado material), na sua dimensão negativa, obsta à repetição do procedimento e consequentemente do seu julgamento, estando esse efeito coberto pela garantia fundamental consagrada no n.º 5 do art. 29.º da Constituição.
Ac. do STJ de 16.02.2006, Proc. n.º 3608/05–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa

A prova dos nove

A cronologia dos factos parece óbvia e ingénua. Pede-se à Portugal Telecom o registo do tráfego telefónico de um determinado número num determinado período de tempo e a Portugal Telecom, benemérita e eficaz, responde com a indicação do tráfego de outros tantos números em outros dilatados períodos de tempo. Durante uns meses, largos, ou anos, poucos, ninguém deu por nada, e o registo por lá ficou, sem peso específico no processo já que era discretamente virtual. Não será de admirar se não se ignorar a incultura militante da maioria dos magistrados no labirinto da informática. Após aturada, sem ironia, investigação jornalística, descobriu-se que o gesto benemérito da Portugal Telecom incorporava a vida telefónica de altos dirigentes do Estado, podendo-se, quase, a partir desses elementos, reconstituir o seu dia-a-dia. O Senhor Presidente da República, com razão, zangou-se, e, logo pelas 7 horas e 30 minutos, deu em convocar, dramaticamente, o Senhor Procurador-Geral da República, o qual prometeu investigação rápida não se sabe bem sobre o quê. Nos entretantos, a Portugal Telecom cultivou a sabedoria de um prudente silêncio, só quebrado pela resposta hostil ao assalto do Engenheiro Belmiro. O que, hoje, a investigação prossegue é a prova dos nove de elementos que não deveriam estar, mas estão, com certeza à revelia incompetente de quem, na ignorância, os acolheu. É uma prova frágil em redor de um envelope, do seu conteúdo, e do respectivo uso ou desuso. Mas é de ciência certa que a dita prova não é, matematicamente, suficiente, nem, politicamente, determinante. O que está por contabilizar é a prova real do lado obscuro de uma estória sobre a (in)segurança do Estado e a (des)protecção dos seus dirigentes. O que está por explicar é como um qualquer funcionário, à distância de uma tecla, obtém o quotidiano telefónico dos Senhores Presidentes ou dos Senhores Ministros, sem qualquer controlo aparente. É ao Governo que cabe esta prova, mais que não seja para dar um sentido útil à golden share que detém, ainda, na Portugal Telecom. O tráfego telefónico de pessoas ou instituições pelas quais passam, pela ordem natural das suas funções, assuntos de Estado, integra alguma base de dados específica? Ou tem um tratamento idêntico ao do utilizador comum? O acesso àquela, a existir, está condicionado por especiais normas de segurança? Quem e em que condições tem acesso às ditas e para que fins? E estão disponíveis durante quanto tempo? É garantido que os elementos que foram ter ao envelope 9 não poderiam ir parar a qualquer outra pasta? A qualquer outro serviço? Todos sabemos, no tempo que passa, que a Procuradoria-Geral da República tem as culpas, todas as culpas, deste mundo e do outro, mas que as desculpas, neste caso, pertencem ao Governo por via dos poderes que lhe cabem e do Dr. Horta e Costa de que dispõe.

Da liberdade, hoje

«Está em marcha uma avançada do poder do Estado em nome da nossa protecção. [...] Mas quem nos protege dos danos causados pelo Estado?
A querela do momento (ou a de sempre?), dentro e fora de portas, é a dos limites da liberdade e da segurança. O episódio dos ‘cartoons’ inflamou o debate que já estava em curso, com a particularidade de revelar que muitos dos que defendem acerrimamente a liberdade de expressão na arena internacional são os mesmos que se têm confessado compreensivos com medidas de limitação individual na ordem interna dos Estados Ocidentais.
Em Inglaterra, pátria de John Locke, o Governo de Blair prossegue a sua batalha parlamentar para que seja introduzido um bilhete de identidade nacional obrigatório para todos os cidadãos, ao mesmo tempo que aprova a proibição de fumar em todos os locais públicos, incluindo todos os PUBs e clubes privados. Por cá, se a regra em relação ao fumo continua a ser relativamente liberal ou em alguns casos simplesmente a não ser cumprida, em matéria de registo central dos indivíduos ninguém nos dá lições. Se a burocracia vigente nos inferniza a vida, crie-se um documento único para cada cidadão. Se a constituição proíbe expressamente que nos codifiquem, qual produto de prateleira no supermercado, com um número único, o Governo propõe então um único cartão com vários números.
Agora, segundo foi amplamente noticiado, a Unidade de Missão para a Reforma do Código Penal, coordenada por Rui Pereira, prepara-se para apresentar uma proposta de alteração ao Código Penal, de forma a punir os jornalistas por “crime de perigo” dos danos eventualmente causados por divulgação de matérias em segredo de justiça. Não querendo ficar atrás, o Bloco de Esquerda, pela voz de Ana Drago, anunciou que vai propor a “punibilidade dos órgãos de comunicação social pela violação do segredo de justiça”, para que a responsabilidade recaia sobre as empresas de comunicação social e não sobre os jornalistas. Sem querer entrar na disputa, e com a devida vénia, apenas poderemos classificar as duas propostas como de igualmente insensatas e perigosas. Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos e, ao que diz a História, o homem que redigiu o texto da Declaração de Independência, resolveu a questão assim: “Se pudesse decidir se devemos ter um Governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último.”
Passados duzentos anos, parece que ainda não aprendemos. Está em marcha uma avançada do poder do Estado em nome da nossa protecção. O Governo quer zelar pela nossa saúde adoptando medidas que visam combater os malefícios do tabaco, sobre o qual cobra impostos, da burocracia, que ele próprio criou, do terrorismo internacional e do mau jornalismo. Mas quem nos protege dos danos causados pelo Estado? Sim, viver em democracia acarreta riscos e ameaças, mas nenhum deles é comparável ao perigo de um Governo com poder absoluto.
Nuno Sampaio, Diário Económico, 28FEV06