terça-feira, 14 de novembro de 2006

Revisão do Código de Processo Penal — Nótula 1

A necessidade de preparar uma intervenção sobre os Recursos em Processo Penal no âmbito do anteprojecto de revisão em discussão pública, levou-me a escrever algumas notas breves de análise de primeira leitura do articulado proposto.
É uma referência sintética a essas notas que me proponho partilhar aqui, na esperança de que tenham, ao menos, a utilidade de alertar os mais distraídos das mudanças (e das continuidades) que o anteprojecto traz.
Hoje limito-me ao enunciado sintético das intenções proclamadas pelo Governo na respectiva Exposição de Motivos, deixando para depois a análise da concretização que mereceram no articulado.
— Assunção do pressuposto de que o direito de recurso constitui uma garantia constitucional de defesa[1], e um corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais[2] mas deve subordinar-se a um desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material;

— Restrição do recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, fazendo-se referência no art. 400.º às penas concretas[3] e aos casos em que a Relação, em recurso, não conhecer a final do objecto do processo;

— Admissão da interposição de recurso quanto à indemnização civil mesmo que não caiba recurso da matéria penal[4];

— Inclusão na proibição de reformatio in pejus do prejuízo dos arguidos não recorridos, no recurso contra um só arguido[5] e limitação da agravação da pena de multa à quantia fixada para cada dia[6].

— Inversão da regra da oralidade das audiências de recurso e supressão das alegações escritas[7].

— Eliminação da exigência de transcrição da audiência de julgamento. Só têm de ser referidas na motivação as concretas provas que impõem decisão diversa, indicando-se as passagens das gravações. O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes.

— Admissão do recurso per saltum para o Supremo quanto à matéria de direito (de acórdãos finais do tribunal colectivo ou de júri), sendo então expressamente proibida a interposição de recurso para a Relação[8];

— Admissão de recurso para as relações dos acórdãos finais do tribunal do júri quanto à matéria de facto[9].

— Redução da vista ao Ministério Público à transmissão do processo, quando tiver sido requerida audiência[10];

— Funcionamento do tribunal de recurso em três níveis: relator, conferência em reclamação e audiência[11]. Alteração da formação da secção[12].

— Admissão do reenvio do processo para novo julgamento no mesmo tribunal[13];

— Obrigatoriedade para o Ministério Público de recurso para fixação de jurisprudência[14];

— Estabelecimento do prazo de 30 dias para recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada a partir do trânsito em julgado dessa decisão[15];

— Aditamento de novos fundamentos ao recurso extraordinário de revisão[16];

— Admissibilidade de segundo recurso de revisão[17].
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[1] Hoje explicitada no n.º 1 do art. 32.º da Constituição
[2] Art. 20, n.º 1, da Constituição.
[3] Substituindo-se, no art. 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e 8anos de prisão por uma referência a penas concretas com essas medidas.
[4] Para garantir o respeito pela igualdade.
[5] No art. 402.º.
[6] N.º 2 do art. 409.º
[7] No sentido de evitar a realização de actos processuais supérfluos, e tendo presente que a audiência no tribunal de recurso corresponde a um direito renunciável, prevê-se que o recorrente requeira a sua realização, especificando os pontos que pretende ver debatidos (art. 411.º). Com o mesmo objectivo, suprimem-se as alegações escritas, que a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações
[8] Art. 432.º.
[9] A solenidade do júri não justifica, ainda assim, uma conversão do direito de recurso.
[10] Passa a destinar-se exclusivamente a tomar conhecimento do processo sempre que tiver sido requerida audiência (art. 416.º). Nesse caso, o Ministério Público junto ao tribunal de recurso terá oportunidade de intervir na própria audiência. Um visto prévio com conteúdo inovador desencadearia o contraditório, arrastando injustificadamente o processo.
[11] Passa a caber ao relator convidar a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas pelo recorrente, decidir se deve manter-se o efeito atribuído ao recurso e se há lugar à renovação da prova e apreciar o recurso quando este deva ser rejeitado, exista causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade e a questão a decidir já tenha sido apreciada antes de modo uniforme e reiterado (artigo 417.º-A). Do despacho do relator cabe sempre reclamação para a conferência.
[12] A conferência, por seu turno, passa a ter uma composição mais restrita, englobando apenas o presidente da secção, o relator e um vogal, competindo-lhe julgar o recurso quando a decisão do tribunal a quo não constituir decisão final e quando não houver sido requerida a realização de audiência (art. 419.º). Só nos restantes casos o recurso é julgado em audiência. Com esta repartição de competências racionaliza-se o funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular.
[13] Art. 426.º-A, apenas se exige que seja respeitado o regime geral de impedimentos, não podendo o juiz que haja intervindo no anterior julgamento participar no da renovação (art. 40.º).
[14] Sempre que estejam reunidos os respectivos pressupostos (art. 437.º).
[15] Em homenagem, diz-se na Exposição de Motivos, a um desígnio de economia processual, (art. 446.º).
[16] A descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas proibidas; a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha constituído ratio decidendi; a existência de sentença vinculativa do Estado português, proferida por instância internacional, que se afigura inconciliável com a condenação ou suscita graves dúvidas sobre a sua justiça (art. 449.º).
[17] A norma que proíbe novo pedido de revisão por quem tenha formulado pedido anterior quando a revisão haja sido negada ou tenha sido mantida a decisão a rever (art. 475.º) é conformada com a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Por conseguinte, só não haverá nova revisão se não for apresentado um fundamento diferente.