segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Decisão contra direito

Abertura da instrução * assistente * objecto do processo * princípio do acusatório * indícios suficientes * denegação de justiça * bem jurídico protegido * crime específico * elementos da infracção* dolo * despacho de não pronúncia
I - De harmonia com a própria letra da lei, a instrução é uma fase facultativa, jurisdicional, em que o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art. 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).
II - Acaso divirja da decisão do MP e acolha as razões enunciadas pelo assistente, o juiz de instrução não lhe devolve os autos, mas pronuncia o arguido pela acusação implícita no requerimento por aquele formulado, assim se respeitando, sob o prisma formal e material, o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória definida constitucionalmente na 1.ª parte do n.º 5 do art. 32.º.
III - Segundo as disposições combinadas dos arts. 298.º e 308.º, n.º 1, ambos daquele Código, se, até ao encerramento da instrução, forem apurados indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, verificando-se os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos; na inversa, despacho de não pronúncia.
IV - A propósito da acusação, mas com inteiro cabimento nesta sede em virtude da norma do art. 308.º, n.º 2, adianta o art. 283.º, n.º 2, do CPP que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
V - No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, não se exige a prova, entendida esta como sinónimo da demonstração da existência do crime, bastam indícios da ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
VI - Possibilidade razoável essa que se baseia num juízo de probabilidade, uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha.
VII - Pretende-se com isto acentuar que, no termo da instrução, compete ao juiz aferir, num juízo de indiciação, é certo, mas ainda assim, e desde logo, objectivado e filtrado pela valoração crítica dos dados probatórios até então recolhidos, se se justifica que o arguido seja submetido a julgamento.
VIII - Concluindo em sentido negativo, profere decisão instrutória de não pronúncia; esta, porque não incide sobre o mérito da causa, configura uma decisão estritamente processual ou adjectiva, no sentido que declara não estarem reunidos os pressupostos para prosseguir para a fase seguinte, a do julgamento.
IX - O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça.
X - Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime os judiciais, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico.
XI - O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente.
XII - Não obstante, ao utilizar-se a fórmula “conscientemente e contra direito”, a lei pretendeu excluir da imputação subjectiva a modalidade menos intensa, a do dolo eventual (n.º 3 do art. 14.º do CP), pelo que o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.
XIII - Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra direito, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém.
XIV - Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.º 1 deste dispositivo; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.
XV - Também não será a adopção de uma orientação jurisprudencial não maioritária, ou a circunstância de a decisão poder vir a ser revogada por Tribunal Superior, que legitimam a conclusão de que a decisão é, para aquele efeito, proferida contra direito.
XVI - Uma resolução é lavrada contra direito quando contradiz o ordenamento jurídico, ou porque comporta uma interpretação interessada das normas vigentes, ou porque se fundamenta numa disposição ilegal ou inconstitucional; em suma, deve traduzir um ataque à legalidade.
XVII - Num Estado de Direito democrático, a divergência no plano jurídico – seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo –, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação deste crime.
XVIII - Quando o que se apura, sem margem para dúvidas, é apenas uma clara diferença de entendimento dos fundamentos da decisão, por parte do recorrente, já que almejava outra decisão, o tribunal não omitiu o dever de julgar, decidiu foi de forma que não era a por aquele pretendida: há uma decisão judicial que expressa uma solução de direito, com indicação das razões pelas quais se assumiu essa posição – discutível, repete-se, por via recursiva –, permitida pelo complexo jurídico-normativo em vigor, não se mostrando, como tal, proferida “contra direito”, com a acepção e o alcance ínsitos ao art. 369.º, n.º 1, do CP.
XIX - Se as hipotéticas conjecturas do recorrente, a leitura e subsequente interpretação que fez desse despacho não encontram arrimo no material probatório objectivo constante dos autos que sustentem a conclusão de que a arguida, na qualidade de magistrada judicial, desrespeitou o encargo que lhe foi confiado – contribuir para a recta administração da justiça – não está preenchida a tipicidade objectiva.
AcSTJ de 08-10-2008, proc. n.º 31/07-3, relator: Cons. Soreto de Barros

Admissibilidade de recurso - data relevante

Admissibilidade de recurso - competência do STJ - aplicação da lei no tempo - acórdão do tribunal colectivo - pena de prisão inferior a 5 anos
I - A lei que regula a recorribilidade de uma decisão – e, consequentemente, a definição do tribunal de recurso – é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1.ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável ao arguido – cf. Acs. do STJ de 29-05-2008, 1313/08 - 5.ª, e de 18-06-2008, 1624/08 - 3.ª.
II - Tendo a decisão recorrida sido proferida pela 1.ª instância em 06-02-2008, em plena vigência da nova redacção atribuída ao art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP pela Lei 48/2007, de 29-08, e respeitando a mesma a pena de prisão inferior a 5 anos, é manifesto que o recurso não pode ser interposto directamente para o STJ, havendo que respeitar o regime regra estatuído nos arts. 427.º e 428.º do CPP: o recurso de decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a Relação, que conhece de facto e de direito.
AcSTJ de 08-10-2008, proc. n.º 2829/08-3, Rel. Cons. Fernando Fróis

Crime continuado - bens pessoais - abuso sexual

Concurso de infracções - crime continuado - pressupostos - culpa - bens eminentemente pessoais - abuso sexual de crianças agravado - crime de trato sucessivo - prevenção especial - prevenção geral - medida concreta da pena
I - Como regra, o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal) – art. 30.º, n.º 1, do CP –, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica for posta em crise, em que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente.
II - Nos termos do disposto no art. 30.º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa.
III - A recente reforma do CP pela Lei 59/2007, de 04-09, introduziu no art. 30.º o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa.
IV - Esta alteração, correspondente ao n.º 2 do art. 33.º no Projecto de Revisão do CP de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
V - Essa discussão não mereceu conversão na lei por se entender que o legislador reputou tal desnecessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado, ao preceito citado.
VI - Diferente não é o pensamento de Jescheck, para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado, por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos em relação a cada acto individual, sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cf. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, ed. Bosh, pág. 652 e ss, e Acs. deste STJ de 10-09-2007, CJSTJ, Ano XV, tomo 3, pág. 193, e de 19-04-2006, CJSTJ, Ano XIV, tomo 2, pág. 169.
VII - A alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
VIII - Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
IX - Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
X - São circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos (veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido); o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.
XI - Resultando do acervo factual provado que o arguido se aproveitou, em todos os casos, da ausência de sua mulher e mãe das menores, filhas de ambos, da residência comum, para daquelas abusar sexualmente, servindo-se do ascendente sobre elas, como pai, são circunstâncias não exteriores ao arguido, mas próprias, por que providenciou, das quais tirou partido para satisfazer paixões lascivas, o seu instinto libidinoso, de que foram alvo crianças indefesas, incapazes de avaliar a amplitude e a gravidade do facto – nunca haviam até então mantido contactos sexuais com outrem – e de deduzirem oposição, de resto irrelevante, não se denotando qualquer predisposição para o facto criando uma menor exigibilidade de procedimento, apesar de ser visível a prática de modo mais que homogéneo, sempre idêntico, aliás, de execução. Não foi qualquer condicionalismo criado pelas filhas, que o temiam, que determinou o arguido à prática dos crimes, mas um desígnio interno, endógeno, firme, ao longo dos anos, num período temporal sucessivamente renovado, sempre próximo, evidenciando um dolo intensíssimo, a que só pôs termo quando abandonou o país.
XII - Ademais, incumbindo sobre os pais o dever jurídico – e natural até –, nos termos do art. 1878.º do CC, de velarem pelo sustento, educação e segurança dos filhos, e naturalmente o seu respeito, o facto de viverem sob o mesmo tecto não pode deixar de exacerbar a culpa pelo facto, que se reiterou por centenas de vezes, na forma mais grave de manutenção de cópula completa por 504 vezes, na pessoa da filha SU, sem preservativo, com o risco de gravidez e transmissão de doenças sexuais, e na tentativa de coito anal por 60 vezes na filha SO, além de daquela ter abusado por 313 vezes, com o que o arguido revela uma personalidade perversa, indiferente a bens ou valores jurídicos fundamentais, bem presente na indiferença ao rogo da filha SU de que não lhe fizesse mal e ao sofrimento físico da filha SO, a quem a tentativa de penetração anal causou fortes dores, efeito que, como adulto, não podia desconhecer.
XIII - Na continuação criminosa a gravidade do facto é menor que no concurso real, na medida em que a execução das actividades aparece, aí, altamente facilitada, não sendo mais do que a consequência do «aproveitamento contínuo de uma certa relação na qual o criminoso se colocou» (cf. Eduardo Correia, ob. cit., pág. 205). Sempre que se comprove que a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa.
XIV - É esse o caso dos autos, pois de outro modo ter-se-ia de concluir que quem mais obrigação tem de velar pelo crescimento harmónico da personalidade dos filhos, tendo-os sob o seu tecto, e de os respeitar, mais benevolamente era tratado pela prática de actos de puro egoísmo, da maior repugnância, tanto à luz do direito como da consciência colectiva, quer no plano ético quer moral, sendo maior a culpa vista a relação próxima gerada pelos laços de filiação.
XV - A tese da continuação criminosa, em caso de menores que convivem com os pais, que deles abusam, de punição do arguido por um só crime – ou seja, pelo crime de maior gravidade, nos termos do art. 79.º do CP –, choca profundamente o sentimento jurídico, e carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente rejeitada de há anos a esta parte – cf., designadamente, os Acs. deste STJ de 28-01-1993, CJSTJ, tomo 1, pág. 177; de 01-04-1998, CJSTJ, ano VI, tomo 2, pág. 175; de 12-03-2002, 4454/01 - 3.ª; de 22-01-2004, CJSTJ, ano XII, tomo 1, pág. 179; de 24-11-2004, 3227/04 - 3.ª; de 15-06-2005, 1558/05 - 3.ª; de 14-02-2007, 4100/06 - 3.ª; de 05-09-2007, CJSTJ, ano XV, tomo 3, pág. 189; e de 16-01-2008, 4735/07 - 3.ª.
AcSTJ de 01-10-2008, proc. n.º 2872/08-3, Relator: Cons. Armindo Monteiro