sábado, 18 de junho de 2011

Casa da Supplicação


Acidente de viação – concorrência de culpas – motociclo – proposta razoável para indemnização – danos não patrimoniais – danos patrimoniais – danos futuros – incapacidades – incapacidade parcial permanente – indemnização – equidade
dade
I - Para determinar se houve concorrência de culpas – como pretende a 1.ª instância, que fixou em 70% para o demandado (também arguido) –, ou culpa exclusiva – como decidido pelo Tribunal da Relação –, importa ter presente os seguintes factos provados:
“1. No dia 20 de Maio de 2000, cerca das 2 horas e 10 minutos, o arguido conduzia o seu motociclo de matrícula LP-...-..., na Rua ..., na Foz do Arelho, no sentido do Nadadouro/Foz do Arelho.
2. Naquela viatura seguia ainda como passageiro RP. 
3. Na mesma ocasião, VS conduzia o seu veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo Passat, de matrícula ...-...-LE, por essa mesma via e em sentido inverso, ou seja, Foz do Arelho/Nadadouro. 
4. Ao chegar à zona do hotel “Foz Praia”, no momento em que os dois veículos se cruzaram, o arguido, que circulava no centro da sua hemifaixa, deixou a mota ir para a esquerda, para o eixo da via, onde se encontrava o veículo referido em 3. 
5. O arguido tinha avistado o veículo automóvel momentos antes dos veículos se cruzarem. 
6. Em consequência desse acto, o arguido embateu com o seu motociclo no lado esquerdo da parte da frente da viatura automóvel, junto ao pneu dianteiro do mesmo lado. 
7. Em resultado da colisão, o motociclo conduzido pelo arguido despistou-se, vindo o arguido e o ofendido RP, que com ele se fazia transportar naquele veículo, a serem projectados e a caírem ao solo. 
8. O local traduzia-se numa curva ligeira para a direita, precedida de uma recta, atento o sentido de marcha Nadadouro/Foz do Arelho, de uma via asfaltada, sem marcação no pavimento a delimitar as duas faixas de trânsito, com pouca iluminação, dois sentidos de trânsito e cerca de 5,40 metros de largura. 
9. O embate verificou-se em zona próxima do eixo da via. 
10. Por força do embate, o pneu dianteiro do lado esquerdo do veículo automóvel rebentou, pelo que o seu condutor só conseguiu proceder à imobilização do veículo a cerca de 67 (sessenta e sete) metros do local do embate.
11. Do local onde se deu o embate ao local onde o motociclo ficou imobilizado distam cerca de 32 (trinta e dois) metros. 
12. Após a imobilização das viaturas, a distância entre as mesmas era de 99,5 (noventa e nove e meio) metros. 
13. No momento em que se deu o embate, não chovia e o piso encontrava-se seco. 

14. O asfalto junto às bermas da estrada mencionada em 1 era irregular”. 
II - Não se tem como certo que o condutor da viatura automóvel tenha infringido o n.º 1 do art. 13.º do CEst; seja como for, se ambos os veículos se mantivessem a circular nas referidas posições – o motociclo “no centro da sua hemifaixa” e o com a matrícula ...-...-LE próximo do “eixo da via” –, ter-se-iam cruzado um com o outro sem risco de colisão, havendo a separá-los a distância lateral de cerca de 1 m. 
III - Não foi, assim, por seguirem nessas posições que o acidente se deu: foi porque “no momento em que os dois veículos se cruzaram, o arguido deixou a mota ir para a esquerda, para o eixo da via, onde se encontrava o veículo referido em 3”, apesar de o haver avistado “momentos antes” (facto n.º 5). Enquanto circulavam naquelas posições, ambos os condutores, reciprocamente avistáveis, seguiam trajectórias que respeitavam entre si uma distância lateral suficiente para evitar colidirem. Porém, quando nada o fazia prever, pois foi mesmo no momento em que iam cruzar-se, o arguido “deixou ir” o motociclo para a sua esquerda, embatendo de frente na viatura e despistando-se, em consequência do que o lesado foi atirado ao chão, sofrendo diversas lesões.
IV - Não pode, pois, atribuir-se à actuação do condutor do veículo automóvel qualquer contribuição para a produção do acidente, pois a sua conduta não criou risco de colisão. Esse risco foi criado exclusivamente pela atitude do condutor do motociclo de, inopinadamente, desviar a trajectória do seu veículo para a esquerda, interceptando a linha de marcha do automóvel no momento em que ia cruzar-se com ele, violando a regra do direito estradal prevista no n.º 2 do art. 18.º do CEst.
V - O outro dos fundamentos do FGA para interpor recurso prende-se com os montantes indemnizatórios atribuídos, fundando-se na circunstância desses valores excederem o que resultaria da aplicação dos critérios previstos na Portaria 377/2008, de 26-05.
VI - Com este mecanismo legal visou-se moralizar a relação dos lesados por acidente de viação com as companhias de seguros responsáveis pelos danos que sofreram, de modo a evitar que estas, valendo-se da sua suposta posição dominante, se aproveitassem da normal maior fragilidade daqueles, apresentando-lhes propostas de acordo com valores muito inferiores aos da indemnização justa, apostando em algum retraimento por parte daqueles em recorrem à via judicial, em função dos custos implicados, da demora da decisão e da incerteza do veredicto final.
VII - Por isso, aqueles valores, fora do referido âmbito, constituirão apenas uma referência, nada impedindo que os tribunais, usando os critérios previstos no CC, fixem valores superiores, o que até constituirá a situação normal, tendo em vista que a aceitação da proposta de acordo da empresa seguradora por parte do lesado desonera este das desvantagens e incómodos que a via judicial comporta, como contratar advogado, indicar testemunhas, lidar com a natural relutância destas em irem a tribunal, por razões evidentes, suportando custos antes de receber seja o que for, para além do risco de, por qualquer razão, não conseguirem fazer valer total ou parcialmente os seus direitos. Além do mais, o diploma nem contempla todos os danos susceptíveis de indemnização.
VIII - Relativamente aos danos não patrimoniais, apurou-se que:
- logo após o acidente foi conduzido ao serviço de urgência do Hospital das Caldas da Rainha, onde esteve internado durante 12 h;
- foi de seguida transferido para o Hospital Militar Principal, em Lisboa, onde permaneceu internado durante cerca de 9 meses, sendo 4 dias de completa imobilização;
- foi aí sujeito a 6 intervenções cirúrgicas;
- dos inúmeros ferimentos resultantes do acidente, destacam-se a fractura exposta da tíbia e do perónio esquerdos e ainda a fractura do fémur esquerdo;
- esses ferimentos provocaram-lhe fortes dores, sendo o quantum doloris de grau 5, numa escala até 7;
- ficou com gonartrose na perna esquerda, com diminuição da mobilidade, encurtamento dessa perna em 20 mm, desvio em varo e angulação ligeira, bipotrofia muscular e várias cicatrizes “deformantes” na mesma perna, algumas de extensão considerável;

- o desenvolvimento da gonartrose implicará nova intervenção cirúrgica para aplicação de artroplastia no joelho esquerdo;
- ficou a claudicar ao andar mais aceleradamente;
- teve de sujeitar-se a sessões diárias de fisioterapia;


- “o facto de ter ficado com uma incapacidade funcional do membro esquerdo” afectou a sua saúde mental, situação que, embora melhorada, não está resolvida; foi submetido a tratamento psiquiátrico;
- tem “marcadas dificuldades em confrontar-se com os seus antigos colegas de trabalho, ficando muito ansioso”, em virtude do seu menos bom desempenho motor;
- sofre por terem ficado definitivamente comprometidas as suas aspirações profissionais no Exército.
IX - Perante estes dados, não pode considerar-se excessiva a quantia de € 25 500, fixada pelas instâncias por danos não patrimoniais, sendo que essa quantia se não afasta do que vem sendo decidido pelos tribunais portugueses em casos similares – cf. Ac. deste Supremo Tribunal de 26-11-2009, Proc. n.º 3533/03.3TBOAZ.
X - Quanto ao dano decidido em função da incapacidade parcial permanente com que o lesado ficou (fixado pelas instâncias em € 150 000), o recorrente não põe em causa que este dano é indemnizável; discute apenas o seu valor limitando-se a apontar montantes que diz resultarem da aplicação dos critérios da Portaria.
XI - A incapacidade parcial permanente, independentemente da sua valoração em certos aspectos como dano moral, deve ser vista como causa de um dano patrimonial futuro, mesmo que não se prove que dela resultou perda efectiva dos proventos do trabalho, na consideração de que normalmente importará diminuição da capacidade de utilização do corpo e numa maior penosidade na execução das tarefas que o lesado terá de desempenhar – cf. Acs. deste Supremo Tribunal de 23-04-2009, Proc. n.º 292/04.6TBVNC, de 26-11-2009, Proc. n.º 3533/03.3TB0AZ, de 12-01-2010, Proc. n.º 107/04.5TBVZL, de 25-02-2010, Proc. n.º 11/06.2TBLSD, de 04-05-2010, Proc. n.º 1288/03.OTBLSD, de 06-05-2010, Proc. n.º 3140/04.3TVLSB, de 14-09-2010, Proc. n.º 797/05.1TBSTS, de 07-10-2010, Proc. n.º 2171/07.6TBCRB, e de 07-10-2010, Proc. n.º 370/04.1TBVGS, todos disponíveis em dgsi.pt.
XII - Não pode deixar de considerar-se a incapacidade parcial permanente de que o lesado ficou afectado como fonte de danos patrimoniais futuros, que devem ser indemnizados, com fundamento no art. 564.º, n.º 2, do CC, que prevê a indemnização por «danos futuros, desde que sejam previsíveis», como no caso se mostrou serem, em ordem a «reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», nos termos do art. 562.º do mesmo código. Mas, tratando-se de danos futuros, apenas previsíveis, o seu valor, não podendo ser averiguado com exactidão, tem de ser fixado com recurso a critérios de equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3, ainda daquele diploma, ou seja, segundo critérios de verosimilhança e probabilidade.
XIII - Como é geralmente aceite, a indemnização por danos futuros deve representar um capital que se extinga ao fim da vida activa do lesado e seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho – cf. Ac. deste Supremo Tribunal de 23-04-2009, Proc. n.º 292/04.6TBVNC, disponível em dgsi.pt.
XIV - No seu cálculo intervêm dados em relação aos quais apenas se pode prognosticar, como o tempo provável de vida do lesado, a diferença, ao longo de todo esse tempo, entre o rendimento auferido e aquele que auferiria se não tivesse havido a lesão, o comportamento da taxa de inflação durante esse período, bem como da taxa de juro, pois o valor da indemnização é recebido de uma só vez e pode render juros, devendo aí, no respeito por aqueles critérios, ter-se em conta o que é normal acontecer.
XV - O lesado tinha à data do acidente 22 anos de idade, tendo normalmente pela frente mais 48 anos de vida activa, até aos 70 anos, idade que vem sendo considerada na jurisprudência do STJ (cf., por exemplo, Ac. de 07-10-2010, Proc. n.º 370/04.1TBVGS, disponível em dgsi.pt) e é apontada, para efeito de apresentação de proposta razoável, no art. 7.º, n.º 1, al. b), da citada Portaria. Se não tivesse ocorrido a lesão, auferiria em 01-10-2002 o salário mensal de € 1257,55, como 2.º sargento do Exército Português, podendo, previsivelmente, progredir até ao posto de tenente-coronel, com as respectivas e sucessivas melhorias salariais. Em resultado da incapacidade física com que ficou frustrou-se essa expectativa, deixando de poder prosseguir a carreira militar, estando agora, com vários anos de atraso, a iniciar outra actividade profissional, onde não se antevê que possa, em qualquer época, igualar o nível de proventos que então auferiria, se continuasse nas Forças Armadas.
XVI - E a incapacidade permanente de 25 %, para além de tornar mais penoso o exercício da nova actividade, tornar-lhe-á muito mais difícil encontrar uma alternativa, se a isso, por qualquer razão, for obrigado, visto estar-lhe fechada a porta de todas as actividades profissionais que exijam uma “forma física normal”.
XVII - Neste circunstancialismo, deve considerar-se que a fixação do valor de € 150 000 por este dano respeita a equidade, estando na linha de outras decisões do STJ – cf. Ac. de 07-10-2010, Proc. n.º 370/04.1TBVGS.
AcSTJ de 01-06-2011Proc.º n.º 198/00.8GBCLD.L1.S1-5, Relator: Conselheiro Manuel Braz

A CHANCELA – III

     O Prado escrevia artigos e livros sobre matérias de Direito. Passara vários meses a preparar aquela obra sobre o «Facto Jurídico», compulsando trabalhos de doutrinadores e arestos dos tribunais. Para ele a Vida consistia no «facto jurídico» e este era uma pequena fatia da Vida, que, uma vez separada do bolo, assumia individualidade absoluta, sofrendo uma autêntica transfiguração. O seu novo livro tinha uma clientela certa, embora limitada, entre os profissionais da mesma arte, o que não era para desprezar, na conjuntura que atravessavam os magistrados que como ele viviam só do ordenado.
     Apareceu nesse dia com um cheque assinado pelo editor e com um exemplar do «Facto Jurídico», que desembrulhou paulatinamente. A mulher observou a capa num relance. Depois olhou o cheque de um lado e do outro, cheirando-o e dobrando-o pelo vinco. E disse com prazer: – «Cheira a novo.» Fizeram as contas: quinze contos para o carro e a outra metade «para renovar as coisas» – expressão usada por Berta, o que significava a satisfação impossível de inúmeras necessidades, como a compra de vestuário, calçado e cobertores, o arranjo dos móveis, a compra de mais uma cama e a pintura interior da casa, porque, agora, como juiz de primeira classe, já não tinha direito a habitação e mobiliário, fornecidos pelo Município. Havia ainda a tantas vezes falada lembrança para a tia Madalena, que ambos reconheciam ter sido sempre «uma verdadeira criada da família». Estavam também de acordo na escolha de um automóvel que tivesse «dignidade». Ele explicou que os carros americanos eram mais robustos e que se vendiam por bom preço, embora o seu consumo fosse mais elevado. Mas este factor, para eles, era de somenos importância, porque o carro lhes interessava acima de tudo para as deslocações na altura de férias. O merceeiro do rés-do-chão, além de um automóvel pequeno, possuía um «De Sotto», azul, que aguentava sacos de batata e de cebola e fardos de bacalhau. Berta fez questão que fosse de cor preta. E convinha (prevenção dele) negociá-lo numa garagem distante. A mulher concordou, preocupada também com a identidade do antepossuidor. O homem disse ainda: – «Não precisamos de garagem. Estão caríssimas». Ela perguntou: – «Quanto?» Ele respondeu: – «Aí uns duzentos e cinquenta escudos. E há por aí tantos ao relento». Ela, reticente: – «Sempre deve conservá-los. E não sei que me parece. Temos uma posição, que diabo». Ele não respondeu.
     As viaturas encontravam-se alinhadas à esquerda. O Prado avisou o filho, logo à entrada. Deviam estar precavidos, porque «os vendedores de automóveis eram todos uma cáfila». O rapaz disse: – «É um modo de vida como qualquer outro». O Prado ficou mais tranquilo ao verificar que cada automóvel tinha um letreiro impresso, indicativo do preço. Deteve-se junto de um «Chrysler», preto, com vasto espaço entre os bancos, onde existiam ainda duas cadeiras metálicas, articuláveis. O filho disse logo que era «uma banheira sem rolha».
     Um homem ainda novo, engaiolado num escritório, aparentou não fazer caso deles, mas não demorou. O juiz disse que a pintura estava «deteriorada». O vendedor falou-lhe num «banho», que ficava barato e o carro como novo, a não ser que preferisse uma pintura completa, que o carro bem merecia. O Prado respondeu: – «Veremos isso depois».
     O filho entrou, accionando o motor. – «Está impecável», aguçou o comerciante, apontando o ouvido com o indicador. Sim, gastava «um poucochinho»; não se podia desejar tudo, mas o que garantia é que arrancava «com uma casa em cima». A suspensão era «de primeira» e os cromados «pareciam de cristal». Já não se fabricavam automóveis daquele «estilo», nem na própria América. Os carros modernos eram «uma casquinha». Acrescentou que não gostava de influir na escolha dos clientes, mas tinham ali «um carro de primeira e para uma pessoa de posição».
     O rapaz saiu e o pai entrou. O vendedor apontou com a mão aberta: «Veja V. Ex.a este tablier.» Sim, repetiu, já não se fabricava daquilo nem na própria América. Introduziu a cabeça para um aparte: – «Era do embaixador da Venezuela». O rapaz ouviu e perguntou pelo livrete. Ele respondeu que estava na Conservatória.
     O Prado saiu do automóvel e disse que o preço «era puxado». O homem respondeu-lhe que «em consciência» ninguém podia afirmar que o custo era exagerado; apesar disso, faria «uma diferençazinha», em atenção ao cliente, que «era conhecido da casa», embora o preço dos carros usados estivesse «muito esmagado».
     O rapaz disse que havia outro carro à entrada, mais pequeno, de menor consumo e pouco mais caro. O Prado foi atrás dele, olhou para a etiqueta do preço e ficou mudo. O vendedor também não disse nada. O juiz voltou para junto do «Chrysler». Então o vendedor disse que tanto lhe importava vender um como outro, mas que o que lhe convinha era aquele, – outro aspecto, outra largueza, outra potência e acima de tudo «outra presença». O segundo, além disso, era mais caro. Evidentemente que «quem mandava ali era o cliente» e até não havia necessidade de pagar tudo de uma vez. O Prado respondeu com secura: «Eu costumo pagar a pronto». O comerciante baixou-se um pouco, abriu as mãos e disse: – «V. Ex.a manda». Acrescentou que o automóvel tinha «raça». O Prado voltou a sentar-se ao volante, fechando a porta e desandando a chave da ignição. Oferta definitiva: doze mil escudos. O vendedor disse: – «Pode V. Ex.a ficar certo de que não ganho para o almoço; mas acabou-se».
     O filho andou à volta e disse que os pneus estavam «carecas». O vendedor prometeu uns «pneus jeitosos para as rodas da frente». – Isto estava a calhar para uma agência funerária» – acrescentou o rapaz. O comerciante fez que não ouviu. O pai corou.
     Entraram no escritório. O comerciante perguntou se o Prado tinha «seguro do outro carro». O juiz disse que não. O filho aconselhou que fizesse o seguro. Eram só mais uns novecentos escudos. Havia também o selo – duzentos escudos. O rapaz achou muito «para um carro de feirante».
Berta ouviu o toque combinado. Foi à janela, seguida pela irmã e pelos filhos. Os vizinhos juntaram-se no passeio fronteiro. Madalena e Berta recuaram, deixando lá as crianças, que aliás se recusaram a abandonar o posto de observação. Reuniram-se mais pessoas junto à farmácia. Tudo o que dizia respeito à vida do juiz tinha para aquela gente um sentido muito especial. Cada vizinho era um espião. Cada gesto do Prado um acontecimento. Este sentia que o colocavam à margem e talvez acima dos outros homens. Apercebera-se até de que, ao ser apresentado a alguém, tudo se modificava quando se inteiravam da sua profissão.
     O Prado era um homem a quem confiaram a missão de punir. Os juízes são as únicas pessoas que em condições normais podem decretar a morte do seu semelhante. Quer queiram quer não, têm algo de deuses e de carrascos, conforme o prisma sob que sejam encarados.