quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Casa da Supplicação


I - Resulta do mandado de detenção europeu em análise que o requerido “foi declarado objeto de uma Ordem de Restrição para Crimes de Natureza Sexual no dia 21 de junho de 2006”, (…), “foi classificado como criminoso sexual registado e com alto risco de reincidência” (…) e “Nos termos do art.º 86.º da Lei 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (Sexual Offences Act 2003), um criminoso sexual registado tem de revelar à polícia a data em que sairá do Reino Unido, o país para onde tenciona viajar e toda a outra informação estipulada pelos Regulamentos antes da data em que tenciona viajar. A informação estipulada está contida no Regulamento 5 da Lei de 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (Sexual Offences Act 2003) (Exigências de Notificação de Viagem) Regulamentos de 2004 (Escócia)”.
II - Assim, como a “Ordem de Restrição para crimes de Natureza Sexual” foi imposta ao requerido por força de um mecanismo administrativo, obrigatório face a uma ou mais condenações por crimes sexuais, não se caracteriza como uma pena acessória ou como uma medida de segurança determinada por sentença judicial. Não há, pois, dupla incriminação, pois os factos não são puníveis criminalmente em Portugal, embora o sejam no Reino Unido.
III - Concorda-se com a interpretação que o Tribunal da Relação de Évora fez da Lei e que se pode resumir assim:
- Nos casos taxativamente elencados no art.º 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, o Estado português não pode recusar a entrega do requerido com fundamento em não ser o facto punível em Portugal, pois não há controlo de dupla incriminação;
- Nos casos aí não elencados, o Estado português poderá exercer a recusa facultativa da entrega.
IV - A recusa facultativa, à falta de critério legal expresso, deve impor, como se diz no acórdão recorrido, «ao Estado de execução uma acrescida ponderação dos interesses relevantes com o fim avaliar da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das finalidades da entrega tendo em conta os valores em conflito». 
V - Contudo, não se pode ignorar que no MDE o princípio geral é o da confiança mútua e o da cooperação em matéria penal entre Estados democráticos que partilham o mesmo espaço político e económico.
VI - Por isso, mesmo nos casos em que a recusa é facultativa, a regra é a da entrega ao Estado requerente, só havendo motivo para exercer a opção de não entrega se fortes razões ligadas aos referidos princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade indicarem outro caminho com suficiente clareza.
VII - O n.º 3 do art.º 2.º da Lei 65/2003, de 23 de agosto, tem de ser interpretado no sentido de que se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infração punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, então é sempre admissível (ou, mesmo, obrigatória) a entrega da pessoa procurada ao Estado requerente, desde que verificados os restantes requisitos configurados na lei.
VIII - Essa norma, se interpretada desse modo, harmonizar-se-ia com o art.º 12.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma, que diz que «1- A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: a) O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no n.º 2 do artigo 2.º».
IX - Os factos que estiveram na origem das condenações do requerido no Reino Unido não são enquadráveis em Portugal como crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual, pois só o seriam se as estudantes filmadas pelo requerido, sem o conhecimento destas, fossem menores de 18 anos e estivessem a praticar atos pornográficos, o que não foi o caso.
X - No nosso ordenamento jurídico, tais factos, todavia, são puníveis como devassa da vida privada, pois constitui esse crime quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos (art.º 192.º, n.º 1, al. b). Trata-se de crime punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
XI - Isto é: face ao nosso ordenamento jurídico, o requerido não poderia ser registado como criminoso sexual, ainda que houvesse esse tipo de registo (o que tem sido objeto de discussão no nosso País, mas que o legislador ainda não consagrou), pois a sua conduta não é considerada como crime dessa natureza.
XII - Mas, como o facto é punível com pena de prisão em Portugal, poderia ser condenado no nosso País numa pena de substituição, por exemplo, numa pena suspensa, com a obrigação de, durante certo período, não se ausentar para o estrangeiro sem avisar as autoridades policiais.
XIII - Assim, a restrição da liberdade de circulação durante certo período não repugna ao nosso ordenamento jurídico e a violação dessa regra de conduta por parte do agente do crime, não sendo considerada como um novo crime, poderia levar à revogação da suspensão e ao cumprimento da pena principal de prisão.
XIV - Por outro lado, os factos que levaram à imposição, no Reino Unido, da “Ordem de Restrição para Crimes de Natureza Sexual”, já foram repetidos pelo requerido “centenas de vezes”, como o próprio admitiu, e também no território de Portugal.
XV - Está, assim, suficientemente indiciado que o requerido tem uma personalidade que facilmente se desvia das regras de conduta social, que o nosso ordenamento jurídico qualifica como penalmente censuráveis, tendo recidivas sistemáticas que o próprio admite não conseguir controlar. 
XVI - O Estado português, portanto, ao abrigo do disposto no art.º 12.º, n.º 1, al. a), da Lei 65/2003, de 23 de agosto, e do n.º 4 do art.º 2.º da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho, tem motivos suficientes para não se desviar da regra de cooperação judiciária e de, portanto, entregar ao País requerente a pessoa procurada pelo mandado de detenção europeu.
Ac. do STJ de 10 de janeiro de 2013
Proc. n.º 77/12.6YREVR.S1
Relator: Conselheiro Santos Carvalho
Juiz Conselheiro Adjunto, com voto de vencido: Rodrigues da Costa
Juiz Conselheiro Presidente da Secção, com voto de desempate: Carmona da Mota

Voto de vencido:
I - Os factos que subjazem à referida Ordem de Restrição não integram entre nós qualquer tipo legal de crime referente à liberdade e autodeterminação sexual, mas unicamente um crime de devassa da vida privada, previsto no art. 192.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (CP) e punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias, dependendo ainda de participação do ofendido (art. 198.º do mesmo diploma legal).
II - Quer dizer: a pessoa procurada nunca seria objecto de qualquer registo como criminoso sexual, ainda que entre nós estivesse em vigor tal tipo de condicionamento da liberdade individual para crimes da referida natureza.
III - Neste contexto, a entrega do referido cidadão britânico mostra-se desadequada, desproporcionada e não necessária, sendo de todo excessivos e deslocados os comentários tecidos pela decisão recorrida a propósito da repulsa causada por tais crimes, quando o tipo de crime que subjaz à Ordem de Restrição é completamente diferente e despojado da enfatizada gravidade dos crimes sexuais.
IV - Deste modo, acho também (com o devido respeito) francamente artificial o arrimo que, na posição que fez vencimento, se procura encontrar no referido art. 192.º do CP, com recurso imaginoso a uma hipotética suspensão da execução da pena que a um condenado por tal crime tivesse sido aplicada, sob condição de, durante certo período, não se ausentar para o estrangeiro sem avisar as autoridades policiais e de o mesmo vir a cumprir a pena de prisão que havia ficado suspensa, por incumprimento de tal condição.
V - De todo o modo, ainda que se pudesse estabelecer a equiparação (que não pode) e com recurso a tão extremada hipótese, nunca o condenado ficaria subordinado a uma tal condição por 10 longos anos.
VI - Por todas estas razões, ao contrário do decidido, teria negado a entrega do cidadão em causa ao Estado requerente
a)  Artur Rodrigues da Costa

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