quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

FMI deita mais achas para a fogueira constitucional

NUNO SÁ LOURENÇO E SÉRGIO ANÍBAL 

10/01/2013 - 00:00
Cortes permanentes nos salários e pensões, despedimentos na função pública, subsídios dependentes do crescimento do PIB: as medidas sugeridas pelo FMI têm o potencial para animar ainda mais o debate constitucional no país
As classificações repetiam-se à medida que se desfiavam as propostas perante os dois constitucionalistas consultados pelo PÚBLICO. "Problemático", "problema acrescido", "violação".
Por não serem novas, por transformarem em permanente o que fora apresentado como extraordinário, por já terem sido objecto de jurisprudência do Tribunal Constitucional, Bacelar Vasconcelos e Bacelar Gouveia levantaram sérias dúvidas sobre a possibilidade de virem a ser aplicadas algumas das ideias mais emblemáticas e com maior capacidade para cortar na despesa constantes no Relatório do FMI ontem divulgado pelo Governo, após ter sido noticiado de forma quase integral pelo Jornal de Negócios.
Apesar de o FMI afirmar no documento - realizado a pedido do Governo como contributo para a redefinição das funções do Estado e o corte adicional de 4000 milhões de euros de despesa - que "qualquer reforma deve ser baseada em medidas de uma natureza permanente e, por isso, consistente com os constrangimentos constitucionais existentes", poucas são as medidas que não colocam dúvidas a nível constitucional. O documento tem por isso o potencial para animar ainda mais uma discussão já bastante acesa com os pedidos de fiscalização do Orçamento do Estado de 2013.
Senão vejamos: nas três opções colocadas pelo FMI para a reforma da segurança social, apenas uma foi vista pelos dois constitucionalistas como passível de não levantar sérias dúvidas em termos de adequação às normas constituicionais.
Bacelar Vasconcelos começou pela proposta do corte permanente de 15% em todas as pensões. "Não vejo como um montante dessa natureza possa ser obtido sem violação da Constituição", disse ao referir-se ao princípio da igualdade. Bacelar Gouveia concorda, lembrando que se no passado estes cortes passaram no TC, tal se devia ao seu caracter temporário. "A única solução possível seria admitir a redução das pensões, mas para as camadas mais jovens", admite.
A proposta de fazer depender o pagamento do 13º e 14º meses do comportamento do PIB pareceu também a ambos uma hipótese remota. "Condicionar os subsídios ao comportamento de um índice económico, deixando de ser por um tempo determinado, ainda por cima tendo em conta um indicador cuja evolução é imprevisível, afectaria a excepcionalidade que foi tida em conta no passado pelo TC", alerta Bacelar Vasconcelos. Bacelar Gouveia vai ainda mais longe ao lembrar que caso a medida fosse aplicada a pensionistas, estes estariam a ser penalizados por uma "situação económica para a qual já não contribuiriam". "Além disso assenta numa ideia do indivíduo ao serviço do colectivo: é uma concepção totalitária e anti-democrática", critica o constitucionalista próximo do PSD.
O terceiro cenário apresentado - mudar a fórmula de cálculo para todos os pensionistas, incluindo os actuais - "levanta todos os problemas que já conhecemos e sobre os quais o TC já fez jurisprudência", alerta Vasconcelos. Gouveia apenas admite essa possibilidade na eventualidade desta ser trabalhada por forma a surgir uma "diferenciação de estratos" etários.
A única proposta do FMI vista como constitucionalmente aceitável é o aumento da idade da reforma e mudança da fórmula de cálculo das pensões para os futuros reformados. "Desde que o princípio da igualdade não seja violado", resumiu Vasconcelos.
As propostas relativas à função pública também não escapam às dúvidas constitucionais. Sobre a proposta de cortes salariais permanentes para todos os funcionários, Vasconcelos afirma que "não há forma de escapar àquilo que já foi decidido pelo TC". Gouveia classifica a medida como "claramente inconstitucional", lembrando que também aqui o TC aceite o corte nos rendimentos por ser excepcional. Tornar essa amputação no salário permanente viola essa "excepcionalidade", além de pôr em causa o princípio da garantia da confiança entre trabalhador e Estado.
Quanto ao despedimento após dois anos no regime de mobilidade, as opiniões dividem-se. Vasconcelos vê nesta medida a violação do princípio da segurança jurídica e da confiança: "Quando assinaram um contrato de trabalho com o Estado não se previa essa possibilidade." Gouveia alerta, contudo, para o facto de a Constituição ser omissa em relação à mobilidade. Poderia ser aplicado, admitiu, desde que o empregador apresentasse "sempre razões objectivas e num despedimento colectivo".
No final, o constitucionalista próximo do PSD, o partido liderante da coligação, não conseguiu evitar um desabafo sobre o dia de ontem. Reconhecendo um certo sentimento de dejá-vu em relação a algumas das medidas, perguntava para que precisaria o Governo do relatório do FMI: "É triste ver um país andar a toque de caixa das organizações internacionais."
Durante o dia de ontem, foi o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Carlos Moedas, quem deu a cara pelo estudo. Moedas classificou o relatório como "muito completo". Uma posição bem diferente de outros membros do Governo, que receberam o documento de forma glaciar (ver texto da página ao lado). "Muito bem feito", "muito trabalhado", devendo vir a ser "lido por todos", insistia o secretário de Estado, que momentos antes afirmara ter recebido o documento há apenas algumas horas. E que por ter "medidas muito específicas", não podia assumir quais as matérias de que o Governo discordava: "São discussões sérias de mais para recebermos o relatório num dia e pronunciarmo-nos sobre ele."
"Pode ter erros factuais, esperemos que não", ressalvava ainda Carlos Moedas, referindo-se às declarações do ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, que considerou que o relatório do FMI tem "pressupostos que estão errados".
O documento apresentado pelo FMI sugere a realização de reformas e poupanças em cinco áreas fundamentais: segurança social, função pública, educação, saúde e segurança, e defende que é hora de apostar em reformas "inteligentes". No entanto, as semelhanças com planos de austeridade anteriores são notórias. Por exemplo, pensionistas e funcionários públicos são outra vez os mais visados pelas medidas.
PORTUGAL JÁ TEM A MAIS ALTA TAXA DE EMPREGO A PARTIR DOS 65 ANOS
O sistema português de pensões "não fomenta a participação no mercado de trabalho", pelo contrário, fornece incentivos que são "adversos" a essa participação, defende o FMI. Mas os dados do gabinete de estatística da União Europeia (UE), o Eurostat, mostram que Portugal já tem a mais elevada taxa de emprego na população com 65 ou mais anos: 14,4%, em 2011, contra uma média de 4,8% nos 27 Estados-membros da UE. Mesmo na população entre os 50 e os 64 anos a percentagem de pessoas empregadas é ligeiramente superior à média europeia: quase metade (47,9%) está, em Portugal, no mercado de trabalho (47,4% na UE). O FMI sugere um aumento da idade da reforma dos 65 para os 66 anos. Uma análise da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) aos sistemas de pensões, divulgada em 2011, mostrava que Portugal já era um dos países onde as pessoas se retiravam mais tarde: os homens aos 67 anos, em média, e as mulheres aos 63,6. A média na OCDE era, respectivamente de 63,6 e 62,4 anos. Quanto à "idade oficial" da reforma, na OCDE é de 64,4, para eles, e de 63,1, para elas. Abaixo dos 65 anos regulamentares em Portugal. Andreia Sanches

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