sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Discurso de Sua Excelência a Srª Procuradora-Geral da República na Sessão Solene de abertura do ano judicial - 2013

Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial 2013

A dimensão simbólica e real de rituais, como o que hoje aqui nos reúne, assume uma importante relevância na construção e no reforço da identidade das instituições, contribuindo, por forma decisiva, para o seu reconhecimento social e político pelas comunidades em que se inserem.
Esta cerimónia solene de abertura do ano judicial parece-nos, pois, ser o momento adequado para “prestar contas” pelo que conseguimos, ou não, alcançar e para apresentar o que nos propomos fazer, ousando acreditar que está, também, nas nossas mãos a possibilidade de ultrapassar muitas das idiossincrasias negativas, características de um sistema de justiça, cujo prestígio urge retomar, para a reconquista da confiança do cidadão.
Sabemos, porém, como se torna imprescindível, numa reflexão conjunta, a partilha assumida das responsabilidades respectivas de cada uma das instituições judiciárias e dos seus actores, no respeito mútuo pelas funções próprias de cada um, todos elas essenciais à realização da justiça e à concretização dos direitos do cidadão. Na procura de consensos e de compromissos, sem os quais não será possível atingir tal desiderato.

Há cerca de quatro meses, ao tomar posse como Procuradora-Geral da República, tive oportunidade de afirmar o meu compromisso para com o estatuto constitucional do Ministério Público.
Hoje, quero reafirmar a importância do princípio da autonomia enquanto corolário da independência dos tribunais e do funcionamento do próprio Estado de Direito Democrático, mantendo-me decisivamente afastada dos que vêm defendendo, mais ou menos explicitamente, a possibilidade de o Ministério Público depender do executivo. Como, igualmente, me mantenho afastada dos que, por qualquer forma, advogam a possibilidade de limitar a autonomia desta magistratura, atribuindo àquele princípio, falaciosa e erradamente, a causa do mau funcionamento da justiça.
Daremos, assim, uma especial atenção às alterações ao Estatuto do Ministério Público, que necessariamente decorrerão da Lei de Organização do Sistema Judiciário, cujo processo legislativo se encontra em curso. Admitindo, nesse âmbito, a possibilidade de repensar estruturas organizativas capazes de responder às novas exigências, mas sempre nos limites do respeito e do reforço da autonomia.
A defesa do princípio da autonomia pressupõe, também, a existência de condições que permitam o seu efectivo exercício. Parecenos, assim, essencial que a Lei de Organização do Sistema Judiciário venha a consagrar uma maior e mais clara participação do Ministério Público no modelo de gestão das futuras comarcas.
Do mesmo modo, nos parece importante consagrar, na legislação relativa à gestão dos Tribunais Superiores, uma maior participação do Ministério Público.
Também as restantes alterações legislativas, como a relativa ao Código do Processo Civil, mas principalmente as respeitantes aos Códigos Penal e Processual Penal, suscitarão a necessidade de o Ministério Público preparar articulada e estruturadamente as adequadas respostas organizativas e de recursos humanos.
Estamos, ainda, disponíveis para colaborar com a comissão que procede à reforma do Código do Procedimento Administrativo, do ETAF e do Código do Processo dos Tribunais Administrativos, apresentando contributos para o que pensamos dever ser o papel do Ministério Público em tais matérias, atendendo à relevância de que essa jurisdição se reveste nas relações do cidadão com o Estado e a Administração.
As exigências que se levantam ao Ministério Público, enquanto uma magistratura de iniciativa que exerce a acção penal, defende a legalidade e interesses de natureza pública de relevância comunitária, aumentaram significativamente com a profunda crise em que vivemos, cujos graves reflexos sociais, a colocam perante um conjunto de novos fenómenos a exigir respostas diferenciadas, qualificadas e eficazes.
Sendo uma magistratura dotada de autonomia, interna e externa, de responsabilidade e de hierarquia, dispõe o Ministério Público dos instrumentos legais e institucionais que lhe permitem responder a tal desafio.
A autonomia interna garante aos magistrados capacidade decisória no caso concreto, no respeito dos ditames da legalidade estrita, da sujeição a critérios de objectividade e, bem assim, às directivas, ordens e instruções hierárquicas, permitindo a uniformização de procedimentos, como factor essencial de eficácia e de eficiência e instrumento do cumprimento da igualdade do cidadão face à lei. Neste sentido, a autonomia interna constitui uma garantia dos cidadãos, enquanto pressuposto fáctico e jurídico que assegura a isenção necessária da intervenção processual, e não um privilégio dos magistrados. De resto, a sua actuação sempre se desenvolverá no âmbito de uma relação hierárquica responsabilizante, sujeita a avaliações periódicas de desempenho. O que pressupõe e exige uma hierarquia que assuma claramente as suas responsabilidades de exercício, coordenando e orientando, prestando apoio técnico e humano, definindo estratégias e objectivos de actuação, planeando a sua actividade de acordo com as necessidades específicas da realidade sócio económica em que se insere, mas sempre em conformidade com as linhas gerais de orientação que periodicamente devem ser definidas pelos órgãos superiores do Ministério Público.
Tem sido preocupação da Procuradoria-Geral da República, constituindo um dos seus objectivos principais, nesta fase, promover a unificação de procedimentos processuais e administrativos, numa articulação necessária entre a Procuradoria-Geral da República e as quatro Procuradorias-Gerais Distritais, estudando e criando os instrumentos necessários que nos permitam ultrapassar as divergências organizativas e procedimentais actualmente existentes, as quais se revelam totalmente inexplicáveis aos olhos dos cidadãos, destinatários primeiros das nossas funções.
Para o que não será despiciendo o estudo de uma necessária reorganização e modernização dos serviços técnicos e administrativos da Procuradoria-Geral da República.
E para o que se mantém essencial o reforço do investimento na informatização de todo o sistema, como factor determinante da modernização e capacidade de resposta do mesmo.
Na procura de definição de orientações comuns, vem-se revelando essencial uma análise cuidada das realidades existentes ao nível dos diversos órgãos e departamentos do Ministério Público, mediante uma auscultação dos respectivos magistrados e profissionais envolvidos, através de contactos, visitas e reuniões de trabalho, que nos permitem detectar deficiências e encontrar caminhos conjuntos e participados para a sua resolução.
Esforço que vem sendo partilhado com o Conselho Superior do Ministério Público, cujo bom funcionamento importa defender e promover, assegurando melhores e mais organizados serviços de apoio.

Conscientes da importância que tem para o prestígio das instituições um conhecimento próximo das suas funções e do modo como as desempenham, designadamente como as colocam ao serviço da comunidade, propomo-nos trabalhar a definição de uma estratégia de comunicação para o Ministério Público, para uma mais adequada concretização dos direitos à informação e à liberdade de expressão constitucionalmente consagrados. Pensando a relação da comunicação social não só com a Procuradoria-Geral da República, mas também com os restantes órgãos e departamentos, nomeadamente os mais afastados da centralidade de Lisboa.
Contamos, aqui, com a cooperação, o profissionalismo e o rigor deontológico dos profissionais da comunicação social.

Mas o reconhecimento e a redignificação do Ministério Público passa, essencialmente, pelo escrutínio constante a que está sujeita a sua actividade concreta e directa, quotidianamente desenvolvida pelos Magistrados do Ministério Público das diversas instâncias, que aqui saúdo.
Importará, pois, explicitar as principais linhas de orientação para as diversas áreas de intervenção do Ministério Público, que nos permitimos realçar, ainda que de forma sucinta e reduzida, de acordo com algumas das principais preocupações que se nos colocam.
As exigências da luta contra a criminalidade organizada e violenta, designadamente contra a criminalidade económico-financeira, a corrupção e a cibercriminalidade, impõem respostas tecnicamente qualificadas, coordenadas e planificadas com os diversos órgãos de polícias criminal, bem como com as demais instituições que asseguram as necessárias perícias e demais apoio técnico.
Assumindo, aqui, sinais de menor eficiência e demasiada morosidade, há que investir na formação especializada dos magistrados e no repensar de formas organizativas que promovam a efectiva assunção da direcção do inquérito pelo Ministério Público, que incentivem o trabalho de equipa, com o envolvimento de diversos magistrados, e que pressuponham como metodologia de trabalho uma abordagem multidisciplinar dos fenómenos criminais e a articulação com os magistrados de outras jurisdições, cujas respectivas matérias se entrecruzam. Há, igualmente, que repensar a ligação entre os DIAPs e o DCIAP, numa tentativa de planeamento de trabalho que, redefinindo competências próprias de cada um dos departamentos e conjugando sinergias, consiga potenciar as respectivas capacidades no exercício da luta contra a criminalidade. Há, ainda, que promover a participação, na fase do julgamento, dos magistrados que dirigem a investigação, principalmente nos casos mais complexos, através de estruturas simplificadas de organização e de intercomunicação, que permitam a resposta mais adequada para cada caso concreto.

No que concerne à pequena e média criminalidade importa realçar a melhoria geral do tempo de resposta dos inquéritos, cujo prazo de duração média, em 2012, se cifrou pelos seis meses, ficando, assim, aquém do prazo máximo de oito meses previsto na lei processual penal.
Contribuiu, para tal, a utilização cada vez mais frequente de processos de forma simplificada – processo sumário, abreviado e sumaríssimo e o instituto da suspensão provisório do processo – sob a qual foi tramitado mais de 50% do volume processual relativo a esta forma de criminalidade.
Mantemos, pois, como objectivo o aumento do recurso a estas formas processuais, em todo o país, por modo a responder por uma forma cada vez mais célere e adequada às expectativas da comunidade e das vítimas em particular, contribuindo, assim para a manutenção do sentimento de segurança e de coesão social.
Importa, contudo, nesta área, identificar fenómenos criminais específicos, como a violência doméstica, a violência contra os idosos, os abusos sexuais e todos os crimes contra as crianças, e estudar respostas e procedimentos comuns, em abordagens sistémicas, que permitam uma adequada resposta integrada.
No que toca à intervenção cível, administrativa e fiscal, impõe-se reafirmar a importância da função do Ministério Público na defesa dos interesses do Estado e dos interesses do cidadão face a práticas abusivas da Administração.
O mesmo acontecendo no que respeita à relevância da acção do Ministério Público na jurisdição do trabalho, tanto mais necessária, quanto em momentos de crise se tornam mais frágeis os direitos dos trabalhadores.
Também na área de família e menores os tempos de crise se reflectem por forma intensa, exigindo magistrados cada vez mais especializados, com forte empenhamento e sentido de responsabilidade comunitária. Nesta matéria, para além do reforço da formação, é objectivo desta Procuradoria-Geral dar uma especial atenção ao papel do Ministério Público no funcionamento do sistema de promoção e protecção, incentivando o seu papel de interlocutor efectivo das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, essencial para o cumprimento da legalidade e para a concretização dos direitos das crianças.

Permitam-me que termine com uma referência à temática da violação do segredo de justiça.
Como é do conhecimento público a Procuradoria-Geral da República determinou a realização de uma auditoria tendo em vista, principalmente, analisar o modo como tais violações vêm ocorrendo, de modo a que nos seja permitido estabelecer um conjunto de boas práticas processuais, que evitem as violações e que permitam a vir a identificar os seus autores, no caso de as mesmas se verificarem.
A violação do segredo de justiça reveste o grau de gravidade criminal que lhe é atribuída pelo Código Penal.
No entanto, a importância de que se reveste a violação do segredo de justiça não advém da sua tipificação penal, mas sim dos prejuízos que daí resultam para a investigação criminal e das consequências fortemente negativas para o prestígio e para a credibilidade da justiça.
Os magistrados, os advogados, bem como todos os profissionais do foro, têm especiais obrigações éticas e deontológicas no escrupuloso cumprimento do dever de segredo e de reserva.
É, pois, uma verdadeira cultura de reserva que se impõe cultivar.
A determinação desta auditoria é o primeiro dos contributos que a Procuradoria-Geral se propõe apresentar para a concretização dessa cultura.
Mas todos sabemos que as violações do segredo de justiça e do dever de reserva têm origem, também, no âmbito da intervenção dos restantes profissionais forenses.
Ouso, assim, desafiar os mais altos responsáveis das instituições judiciárias a juntarem-se ao Ministério Público com os contributos que considerem mais adequados no âmbito das instituições que dirigem, que permitam o aprofundamento de uma cultura de reserva a que todos estamos obrigados, na assunção pública de um compromisso contra a violação do segredo de Justiça.

Bom Ano e Muito Obrigada.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2013

A Procuradora-Geral da República

Joana Marques Vidal

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