sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

"Os tribunais e o estado da República I"


É uma falácia acenar com as reformas douradas de um punhado para saquear à socapa as pensões de todos
Está-se a assistir ao confisco dos reformados
José Fernandes
Grande parte dos cortes em que se tem consubstanciado a austeridade do governo tem recaído nos aposentados e pensionistas. Principalmente os da função pública. Não tenho particular afeição pela administração pública portuguesa, que considero anacrónica, ineficiente, gigantesca, laxista e pouco produtiva. E nesta administração pública integro tudo, tribunais também, obviamente. Mas não posso deixar de repudiar que seja sobre os aposentados e pensionistas da função pública que recaia o grosso do ataque feito pelo mais colectivista dos governos que tivemos na nossa história. Após 36 anos, ou mais, de descontos, a coberto de uma relação contratual que se quer estável e se exige seja cumprida pontual e integralmente por parte do Estado, não é legal, não é constitucional, não é justo nem é decente que aos aposentados e pensionistas da função pública o governo imponha mais esforço que aos demais.

Um Estado constitucional proíbe a tributação confiscatória. E exige a tributação seja, sem mais nem menos, igual para todos. Nenhuma razão existe, acima ou abaixo do céu, que legitime que os reformados paguem mais do que os funcionários no activo.

E é uma falácia acenar com as reformas douradas de um punhado para saquear à socapa as pensões de todos. Todos quantos, bem ou mal - isso é responsabilidade do próprio Estado -, serviram a coisa pública durante toda uma vida.

Como admitir que quem tem maior capacidade contributiva e pode prover ao seu sustento, nomeadamente os trabalhadores do activo, pague uma taxa efectiva de tributação inferior aos aposentados e aos pensionistas?

Será responsabilidade dos aposentados deste país a crise em que estamos? Será sua responsabilidade que os partidos tenham reservado para os seus reformas douradas através de estatutos especiais do Banco de Portugal, das empresas públicas, das autarquias locais e do parlamento?

Não. A culpa é, em grande parte, dos tribunais, nomeadamente dos tribunais administrativos. Há meia dúzia de anos, quando os cortes ainda não os afligiam, os senhores magistrados entendiam ser constitucional a medida de Ferreira Leite de penalizar as reformas antecipadas, quanto à idade, dos funcionários que haviam trabalhado os 36 anos de serviço que a lei lhes impunha, quando os políticos se reformavam por inteiro a qualquer idade.

Para esses senhores juízes, agora tão ufanos a clamar contra as inconstitucionalidades que lhes tocam, era justo um presidente de câmara, um juiz do Constitucional, um técnico do Banco de Portugal ou um deputado reformarem-se com pensões por inteiro com qualquer idade, ao invés de qualquer funcionário público.

Como os tribunais portugueses esqueciam que havia Constituição, como esqueciam as regras de direito comunitário, tudo foi possível. Agora, como se vêem a sofrer cortes, torcem a orelha... e pedem ao Tribunal Constitucional que faça o que eles se demitiram de fazer. A ver se não provam do próprio remédio!
Correio da Manhã, 15-02-2013

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