sábado, 13 de abril de 2013

A fúria da razão

JOSÉ PACHECO PEREIRA 

Público - 13/04/2013 - 00:00
O meu instrumento é a fúria da razão. É que o engano, o medo e a indecência não podem ser tratados com falinhas mansas
Quando já se viu bastante, durante muito tempo, e com muitas reviravoltas de fortunas, sucessos e desastres, olha-se para as coisas de outra maneira. É um olhar sem inocência, com muito pouca esperança, que tem defeitos, mas também pode ter virtualidades. Claro que posso valorizar as virtualidades e menosprezar os defeitos - isso vem no "pacote" do olhar -, mas é o que há, e não se consegue outro. Vem isto a propósito daquilo que alguns pensam ser o meu "radicalismo" na análise e comentário sobre a situação presente, crítica que pouco me incomoda mas que me interessa entender, quando é de boa-fé, e interrogar até que ponto tem ou não sentido. E algum terá, não pelas razões que são sugeridas, mas por outras.
A reflexão sobre a intervenção pela escrita e pelo comentário no debate público é hoje uma questão polémica, que inclui também elementos de confronto corporativo entre jornalistas e políticos pelo bem escasso da influência. Voltarei a essa questão noutra altura, mas não é disso que vou falar. Aquilo que vou fazer é uma reflexão pessoal sobre os efeitos do meu próprio acesso ao espaço público e participação nesse espaço, e é necessariamente subjectiva e impressionista. Pode ter também algum wishfull thinking mesmo que freudianamente inconsciente, embora eu saiba o suficiente para ter poucas ilusões nesta matéria e só mesmo se Freud tiver muita razão, do que não estou certo.
Sei suficientemente sobre história para não ter dúvidas sobre a inanidade das ilusões que cada um tem sobre o rastro do seu papel, mesmo quando ele possa parecer existir por uns dias ou um mês. Com excepção de meia dúzia de pessoas, a história de Portugal levará todas as outras para as notas de futuras teses muito especializadas de doutoramento. E, com o tempo, cada vez mais especializadas, e com cada vez menos nomes. Por isso, quem pensa que por ser conhecido por algumas centenas de milhares de portugueses, fruto do poder da televisão, significa mais do que isso, vai ter muitas surpresas para o seu ego.
"Ser conhecido" sou, isso é verdade, nem sempre pelas melhores razões, mas, para quem escreve nos media ou "aparece" nos media desde os catorze anos, e, repito, com a força da televisão, isso não vale muito por si. Porém tenho consciência de que os efeitos do que escrevo e digo nestes dias - e é possível medir pelo menos a intensidade da audição e da audiência - se deve a factores muito peculiares da crise que vivemos e é essa relação de que me interessa falar.
O que tenho dito e escrito, as provas materiais desse "radicalismo", tem vindo a ter sucesso, mesmo que esse sucesso seja polarizado, muito apoio e alguma recusa, em ambos os casos de forma veemente e pouco moderada, porque os tempos não estão para a moderação. Basta-me ir à rua, basta-me ler o correio que recebo, acompanhar a Rede, e ver o cortejo de admirações e irritações que por aí circulam, para o perceber. Já não é a primeira vez que isso sucede, com altos e baixos, mas agora estou perante alguma coisa de diferente de momentos do passado, em que um ou outro artigo ou intervenção circularam significativamente, como o artigo sobre os incidentes na Ponte 25 de Abril, que vem hoje nas antologias e é dado nas escolas.
O que há hoje de diferente é um efeito de representação, mais do que de concordância. As pessoas que se manifestam a favor do que digo sentem-se "representadas", e esse sentimento está para além do mero apoio intelectual ou da comunidade de pontos de vista. Esse efeito de "representação" é fruto dos tempos em que vivemos, em que, mais do que perceber - no essencial as pessoas percebem tudo -, se deseja uma voz, alguém que fale deles e por eles. Sei bem que isto é muito ambíguo, e não vai durar, mas existe e como hoje nunca me aconteceu. Este efeito de representação não é aquilo que habitualmente se chama "influência", e por si só não exige um especial mérito, pode inclusive abrir caminho ao populismo.
Há quem o tenha no espaço público, por exemplo, Medina Carreira, ou alguns jornalistas como José Gomes Ferreira, quando solta a pessoa que há em si, para além da função, também geram efeitos de representação. São casos muito diferentes do acesso ao espaço público pelo comentário, dos de Marcelo ou Marques Mendes, assentes em atitudes de curiosidade, vontade de saber ou ser informado, empatia resultante de uma longa familiaridade, e "comunicação" num sentido lato. São monólogos que "conversam", sendo que o caso mais relevante é sempre o de Marcelo. As pessoas não se sentem "representadas" por Marcelo, mas participam num efeito de comunicação, muitas vezes lúdico e intelectual, mas também irónico, maldoso, punitivo, uma vontade activa de aprender, um produto cívico que o sistema político e os partidos deixaram de fornecer
Mas se as pessoas comuns não se sentem "representadas" por Marcelo, mesmo que com ele "comuniquem", uma parte importante da sua real influência vem de que os jornalistas, esses sim, compartilham com ele uma relação de mestre e discípulos. Desse ponto de vista, a sua influência é real, embora as suas opiniões sejam mais difundidas do que discutidas, classificam mais do que interpelam. Marcelo "fez" o modelo dominante do jornalismo político português, e com excepção de O Independente de Portas e Esteves Cardoso, os quadros desse jornalismo são-lhe devedores.
Com a crise do modelo de O Independente, Marcelo ficou sozinho dominando a cena da análise e do comentário (veja-se o mimetismo de Marques Mendes). Aliás, a estrutura do seu comentário é a de um jornal, incluindo agenda, editorial, notícias, nacional e internacional, página de desporto, montra de livros, e secções do tipo "gente" e "setas para cima e para baixo", e até os brindes especiais para os seus espectadores, dados por via dos presentes aos interlocutores presentes. Embora Marcelo tenha uma agenda política própria, ela é suficientemente transparente para não ser enganadora, e é subsumida pelo seu poderoso efeito comunicacional, que o torna uma personalidade dos media que só por censura podia ser, como vários tentaram, retirada do espaço público, a que acede por pleno direito. (O caso Sócrates é mais complicado, e exige uma análise a mais médio prazo, porque não estou certo de que não possa também ter efeitos de representação, para além da óbvia agenda política própria.)
Não menosprezo, bem pelo contrário, esse efeito de representação, porque entendo que em momentos de crise faz parte da "pertença" a uma comunidade o esforço de estar com os que mais sofrem das consequências de um mundo de que perderam o controlo e o norte. Se quisermos é isso o núcleo duro do "patriotismo", estar com, estar com a comunidade, com os que são mais fracos, mais estão a perder, e menos defesa têm. Parece um discurso abastardado de uma certa hipocrisia caridosa que está tão entranhada na nossa cultura mole quanto não se pratica. Mas não é, só que me faltam palavras para dizer de outra maneira. Tal não significa que a análise deva abandonar a racionalidade a favor de uma emotividade mais próxima do pathos colectivo. Bem pelo contrário, temos já pathos bastante na nossa vida pública.
É por causa desse efeito de representação, que assenta num mecanismo de empatia, seja positiva seja negativa, que é mais fácil falar em "radicalismo", porque as palavras, os comentários moldam as atitudes. E desse ponto de vista há também mais perturbação, que é transmitida pelo discurso. Se a veemência fosse apenas de ordem intelectual, ou seja, contra nada que não fosse a estupidez (e isso já seria gigantesco), não exerceria esse efeito de identificação. Mas não é, é contra algumas coisas do presente, que estão no âmago da crise.
Onde é que está a fonte do meu "radicalismo" e, penso eu, no efeito de representação-identificação de que estou a falar? Primeiro, na convicção das pessoas, cada vez mais consciente, de que estão a ser enganadas. Em segundo lugar, uma vontade simples de decência nas coisas públicas. Por fim, pela recusa de serem governados pelo medo, e governados para o medo
Pode parecer uma agenda moralista, mas é uma pura agenda política no sentido nobre da palavra. Compreendo que essa agenda possa ser radical, mas a culpa é do estado do "presente", não é minha. O meu instrumento é a fúria da razão. É que o engano, o medo e a indecência não podem ser tratados com falinhas mansas, mas com dureza e severidade. Se não fosse assim, não valia a pena.
Historiador. Escreve ao sábado

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