quinta-feira, 4 de julho de 2013

Conferência. A primeira vítima da crise é a justiça

Juizes e procuradores de toda a Europa analisaram em Berlim os efeitos da crise no Estado social e na justiça
NUNO RAMOS DE ALMEIDA

O governo grego manda desligar o sinal da televisão pública. Um acto que vai contra a própria lei do país. Tempos difíceis exigem, segundo o executivo dirigido por Antonis Samaras, medidas extraordinárias que tenham em conta "o interesse comum". A polícia portuguesa detém 231 pessoas por "manifestação ilegal", crime que não existe na legislação portuguesa, e atentado contra a segurança rodoviária.

Um porta-voz da troika faz críticas aos Tribunal Constitucional português. Um ministro alemão considera que o Memorando de entendimento deve estar acima das legislações nacionais, por motivos relacionados com o combate à crise.

São tudo sinais que se propagam por uma Europa em crise. Por todo o lado reinam as políticas de austeridade e são liquidadas conquistas sociais de gerações de trabalhadores. O Estado social parece condenado. Sobre esse pano de fundo, a MEDEL (Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades), que junta sindicatos de juizes e magistrados de toda a Europa, e a confederação de sindicatos de serviços alemã, Ver.Di, com mais de 2 milhões de associados, organizaram uma conferência intitulada "O Estado Social à Mercê dos Mercados Financeiros".

Em plena capital da política de austeridade, Berlim, juntaram-se, no final do mês passado, magistrados e académicos do velho continente para falar das implicações no Estado social e na justiça das políticas económicas que têm sido aplicadas em todos os países intervencionados pela troika, com efeitos no resto da União Europeia.

Numa das primeiras intervenções, o professor da Universidade de Paris-Nanterre Antoine Louys-Caen diz que vivemos uma espécie de ruptura, em que nos garantem que "não há alternativa". Exemplo deste discurso é a criação do conceito de "mercado do trabalho". A escolha das palavras não é inocente e pretende que se apliquem às pessoas as regras de mercado sem qualquer constrangimento ético. "Os direitos e o direito são neste modelo reduzidos" e só têm lugar como incitação à mobilidade e liquidação de entraves à alegada fluidez do modelo.

Como os países da União Europeia e do euro estão impedidos de fazer uma desvalorização monetária ou impor barreiras alfandegárias, segundo o académico francês, os governos "estão a impor uma desvalorização legislativa do valor da lei", para levarem a cabo esta verdadeira revolução contra o trabalho.

Na sua intervenção, o professor José João Abrantes, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, alertou para as alterações de política legislativa em matéria de legislação do trabalho, que se verificam um pouco por todo o lado, para garantir uma "maior flexibilidade do mercado do trabalho" e lembrou que "há valores que não podem ser conseguidos pelos simples funcionamento dos mecanismos de mercado. O princípio fundador de qualquer sociedade é a dignidade humana. Isto é aquilo que tem de ser sempre a preocupação de qualquer legislação laboral".

Numa mesa redonda com vários dos países intervencionados pela troika foi analisado o desmantelamento do Estado social na Europa, tendo o juiz grego George Ampouras afirmado que "as medidas legislativas para implementação do Memorando não só infringem as leis gregas e a legislação internacional, mas atacam o princípio fundamental do papel social das leis e da justiça". Por seu turno, o procurador da República Viriato Reis fez um balanço das medidas de austeridade em Portugal e defendeu que perante o desastre social só é possível "sair da crise sem abandonar a cultura constitucional" respeitando direitos, liberdades e garantias.

No discurso de encerramento, o presidente da MEDEL, António Cluny, defendeu que "só uma aliança entre a força humanista do direito com a força criativa dos movimentos sociais pode, em paz, vencer o caminho selvagem e perigoso percorrido pelo actual capital financeiro e os políticos de todas as nacionalidades que lhe obedecem cegamente".

António Cluny Presidente da MEDEL

"É preciso estabelecer standards mínimos sociais'
- Qual foi o propósito desta iniciativa?
- O objectivo da conferência foi dar seguimento à reflexão iniciada pela declaração de Vilamoura produzida em 2012 e que expressava as preocupações da MEDEL acerca da diminuição dos direitos sociais e as suas consequências na sociedade.

- Esse processo de enfraquecimento dos direitos continua?
- Ficou claro que esse enfraquecimento é comum, embora com diferenças significativas. Há países que embora com cortes de despesa mantêm standards mínimos que não foram degradados. No nosso entender é preciso estabelecer standards mínimos sociais que em nenhuma circunstância devem ser ultrapassados.

- É significativo a conferência ter sido realizada na Alemanha?
- É significativo por terem sido os nossos colegas alemães a organizar a conferência em solidariedade com os povos do Sul da Europa. E por terem estado presentes na conferência a nata dos especialistas em direito do trabalho alemães que ficaram cientes das realidades que se passam nos países intervencionados pela troika. Onde a desregulamentação do mercado do trabalho ultrapassa em muito a da própria Alemanha.

Sem comentários: