segunda-feira, 15 de julho de 2013

Justiça investigou 260 magistrados mas só julgou cinco

Processos. Maioria das suspeitas é arquivada: muitos casos são pouco graves, mas há situações de maus tratos, homicídio negligente e até raptos de crianças. Hoje começam as férias judiciais com dois milhões de casos parados
Ministério Público investigou, nos últimos três anos e meio, 260 casos em que os suspeitos eram juizes ou procuradores, mas só deduziu acusação contra cinco. Na maioria, são queixas pelo crime de denegação de justiça e prevaricação feitas por cidadãos insatisfeitos, mas há casos bem mais graves. Este ano, o distrito judicial de Lisboa acusou duas magistradas, uma por homicídio negligente e outra por condução sem carta. Agora, é tempo de férias judiciais. Os tribunais fecham hoje, até final de agosto, com muitos processos pendentes
De 260 juizes e procuradores investigados só 5 são acusados
Dados. Ministério Público arquivou quase todos as suspeitas de crime contra juizes ou procuradores. Maioria dos casos é por denegação de justiça, mas há situações de homicídio negligente, rapto de crianças e maus tratos
FILIPA AMBRÓSIO DE SOUSA
Um magistrado que confiou um menor vítima de maus tratos a uma instituição é alvo de uma queixa feita pelo pai revoltado. Uma mãe, que é procuradora, é investigada porque o seu ex-marido não está contente com o facto de não conseguir ver a filha quando quer. Um juiz responsável por um processo de regulação de poder paternal é acusado de enviar sms ameaçadores ao pai da criança, apesar de estes serem anónimos. São, em suma, suspeitos de crimes de subtração de menor e ameaça. Não são poucos juizes e procuradores do Ministério Público (MP) a contas com a justiça, mas raros são os que se sentam no banco dos arguidos.
Segundo o que o DN apurou, no total, 260 inquéritos-crime em 2010, 2011, 2012 e primeiro semestre de 2013 visaram magistrados. No entanto, apenas cinco magistrados foram acusados e responderam ou vão responder em tribunal.
A maioria dos casos, quase 60, é de suspeita de “denegação de justiça e prevaricação”. Ou seja: magistrados que foram suspeitos de, no decorrer das suas funções judiciais, terem favorecido conscientemente uma das partes, recebendo benefícios por isso. Um crime punido com pena de prisão até dois anos.
Grande parte destas situações é “cidadãos que ficaram descontentes com as decisões judiciais e querem queixar-se”, explica José Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juizes Portugueses (ASJP). “Isso acontece também no Conselho Superior da Magistratura”, sublinha.
“Há muitas denúncias que nos chegam que são queixas relativas a decisões dos juizes, como se fôssemos um tribunal de recurso”, confirmou ao DN fonte oficial do CSM. Nos últimos três anos e meio, foram também investigados 15 casos de difamação (ofender alguém, de forma que uma terceira pessoa tome conhecimento) e 12 de injúrias (insultar alguém diretamente). São situações de cidadãos que se sentem caluniados por juizes numa sala de audiências ou fora dela Porém, as cinco acusações formalizadas duasjá este ano – referem-se a crimes bem mais graves. Uma magistrada que atropelou mortalmente um peão na passadeira (homicídio negligente), uma procuradora que conduzia habitualmente sem carta de condução ou outra punida por condução sob o efeito do álcool. Os restantes dois são arguidos que respondem pelo crime de branqueamento de capitais e falsificação de documentos agravada (ver caixas ao lado). Porém, este cinco casos que foram levados a tribunal perfazem apenas 4% do número total de investigações. Casos de violência doméstica
O caso de um procurador do Ministério Público da Madeira suspeito de agredir fisicamente a companheira deu que falar em janeiro passado. Investigado pelo crime de violência doméstica, o juiz acabou por ver o seu inquérito arquivado por desistência da queixa da própria vítima, em março.
Ao todo, surgiram três situações de alegadas agressões em contexto conjugal praticadas por magistrados, acabando todos eles arquivados. Além dos referidos, há também situações de abuso de poder, violação do segredo de justiça, falsificação de boletins e atas, falsas declarações e denúncias caluniosas. E dois de burla qualificada. Também todos arquivados.
Segundo o relatório anual da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, relativo a 2012, estes números de queixas contra magistrados justificam-se pela “erosão do prestígio das instituições judiciárias que gerou um caldo de cultura que favorece a apresentação de queixas por razões que constituem mera discordância com o sentido de decisões processuais”. Mas Mouraz Lopes admite: “Há casos que nada têm a ver com o exercício da profissão judicial e que têm deserpunidos, mas são muito raros”, concluiu.
4 PERGUNTAS A…
“Muitas pessoas usam a queixas-crime como tribunal de recurso”
MOURAZ LOPES Presidente da Ass. Sindical dos Juizes Portugueses
- Porque é que existem tão poucas acusações, face às quase 300 queixas?
- Porque a maioria delas não tem fundamento. Da parte da magistratura judicial, o que posso dizer é que são mesmo raras as situações em que está em causa a falta de idoneidade moral de um juiz no exercício da profissão. Não há registo quase nenhum de comportamentos criminais. Não conheço nenhum caso, a não ser de um procurador que frequentava casas de alterne.
- A maioria dos casos é de denegação de justiça. Ou seja: um magistrado que se recusa a julgar contra uma das partes com vista a algum benefício…
- Há casos em que são feitas queixas-crime por puro desconhecimento das pessoas. E outros casos diferentes são no registo de “vingança”, em que usam a queixa como tribunal de recurso. Porque discordam com a sentença, recorrem ao Ministério Público. Mas há casos públicos como condução sob efeito do álcool ou falsificação de documentos… Não acha que os magistrados deviam ser alvo de uma maior fiscalização pela profissão que exercem? – Claro que sim, e têm. Além dos processos-crime, há os procedimentos disciplinares dos conselhos superiores. Porque a vida privada de um juiz reflete-se na sua vida profissional. E, a partir daí, pode haver sanções que podem passar pela suspensão de funções. E há casos desses, basta ver o relatório anual do Conselho Superior do Ministério Público.
- Não receia que tão poucas acusações apenas4% do total investigado – possam ser alvo de crítica e gerar suspeitas de encobrimento dos colegas?
- Não, de todo. É preciso desconstruir essa ideia. Porque as queixas são arquivadas, na sua maioria, porque não há mesmo prova. Muitas vezes, os factos não ocorreram. E o cidadão tem de ter essa noção e não achar que isto são casos de encobrimento.
Crimes que ficaram públicos
Os casos tomados públicos envolvem todos magistradas. E os crimes não são leves: pedofilia, branqueamento de capitais, violação do segredo profissional e falsificação.
Mulher de reitor da UNI
Em 2010, uma magistrada, ex-mulher do vice-reitor da Universidade Independente, foi acusada do crime de branqueamento de capitais e falsificação de documentos, num caso relacionado com a dissipação do património que o casal adquiriu com dinheiro subtraído à Universidade. Acabou condenada a pena suspensa de cinco anos de prisão, mas a defesa recorreu. Neste momento, a decisão está a ser analisada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ajuíza admitiu em julgamento ter colocado bens em nome de familiares e de ter sido depositado dinheiro da venda de imóveis na conta do irmão.
Condução com álcool
Em maio de 2011, uma procuradora de Cascais foi mandada parar pela polícia por conduzir em contramão e com uma taxa de alcoolemia de 3,08 g/l, mais do dobro do máximo permitido por lei’ Foi acusada em setembro de 2011 e julgada em novembro. A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi apenas de suspensão provisória do processo durante um ano. Este crime é punível com prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, implicando ainda a inibição de conduzir de seis meses a um ano. Ou seja: em setembro passado, a magistrada ficou autorizada a voltar a conduzir.
Procuradoras seduzidas
Duas procuradoras adjuntas do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa foram acusadas de violação do segredo profissional, falsificação de documento e abuso de poder por terem passado dados pessoais de cidadãos e altos quadros da magistratura a um burlão que as seduziu, fazendo-se passar por coordenador da Interpol. O homem era, na realidade, um evadido da prisão desde 2003. As magistradas chegaram a dar-lhe informações relativas ao seu próprio processo. Os factos remontam a 2008 e a acusação é de setembro de 2012. Foram suspensas de funções.
Suspeita de pedofilia
No início de 2012, uma magistrada jubilada de Braga foi acusada de pertencer a uma rede internacional de pedofilia.
A investigação da Polícia Judiciária foi iniciada a pedido de uma polícia internacional que detetou que o IP do computador de casa da magistrada pertencia a uma rede que partilhava conteúdos de pornografia infantil. Neste momento, o processo está parado e nunca chegaram a ser feitas as buscas a casa da magistrada. Desconhecem-se as razões e o processo já poderá até estar arquivado. O processo está disponível na Internet, mas não revela a profissão da arguida.
Tribunais ‘fecham’ com quase 2 milhões de processos parados 
férias judiciais De 2011 para 2012, a primeira instância ganhou mais 27 mil casos por decidir. No total, são mais 1,6% de casos pendentes, contrariando a exigência da ‘troika’ 
Os tribunais vão estar encerrados a partir de hoje – até ao último dia de agosto – com cerca de dois milhões de processos parados. Segundo dados da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), até ao final de 2012 estavam cerca 1 719 000 processos pendentes nos tribunais de primeira instância, mais 27 mil do que os registados pelo Ministério da Justiça no período homólogo do ano passado.
Estes números poderão piorar com a suspensão de audiências de julgamento e inquirições durante o próximo mês e meio. Durante este período, os julgamentos estão suspensos, à exceção dos considerados urgentes e os que envolvem arguidos detidos ou presos preventivamente. Apesar de os magistrados -juizes e procuradores do Ministério Público – não estarem sem trabalhar todo este período, a movimentação processual não é semelhante à do resto do ano. “Essa questão das férias é uma falsa questão porque os profissionais judiciais não estão sem trabalhar todo esse tempo”, garante Carlos Almeida, presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça, em declarações ao DN. “Embora as audiências estejam suspensas, à exceção dos processos urgentes e por definição das partes, não estamos sem trabalhar”, explica.
Segundo a DGPJ, este ano entraram nos tribunais 841 mil processos, mais 73 mil do que no ano anterior. E a tendência tem sido de subida desde 2010, ano em que entraram nas secretarias judiciais 713 mil litígios para serem resolvidos em julgamento.
Estes números contrariam o memorando da troika, assinado em maio de 2011, que impôs a diminuição dos processos parados na justiça. A verdade é que se registou um aumento de 1,6%. Para esta variação contribuíram em larga escala os processos cíveis – sobretudo as ações de cobrança de dívidas, que perfazem 72% do total.
Para José Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juizes Portugueses, este aumento era “previsível” por influência dos processos cíveis que, num quadro de crise económica, têm tendência a aumentar. Mouraz Lopes destacou ainda medidas já em curso, de “limpeza” das pendências de processos que já não deviam estar nos tribunais e que poderão trazer números mais positivos em 2013.
MUDANÇA DE LEI
Alberto Costa alvo de críticas devido a férias
Corria o ano de 2005, José Sócrates acabara de ser eleito primeiro-ministro e Alberto Costa nomeado ministro da Justiça. A redução das férias judiciais foi uma das medidas emblemáticas do Governo socialista. Anunciada no início do mandato, gerou polémica entre magistrados, advogados e funcionários judiciais. Ou seja: de dois meses, de 15 de julho a 15 de setembro, os magistrados e oficiais de justiça passaram a ter os tribunais encerrados um mês e meio. O sector justificou as críticas, alegando que esse período serviria para concluir e despachar processos mais antigos e realizar diligências.
Portugueses pagam mais por justiça custas 
Os portugueses pagaram 221 milhões aos tribunais em 2011 – última atualização do Ministério da Justiça divulgada no site-, mais 47 milhões de euros do que seis anos antes, em 2005. Em causa está o aumento sucessivo da unidade de conta (UC) valor de referência cobrado por cada processo judicial – que atualmente já atinge os 102 euros.
Num processo que valha até dois mil euros, a parte que perdeu tem de pagar uma unidade de conta ao Estado: 102 euros e ainda as despesas da parte vencedora. Num processo cujo valor da ação judicial seja entre 200 a250 mil euros, o Estado recebe 1428 euros, referentes a 14 unidades de conta. Dos mais de 220 milhões de euros pagos pelos portugueses, 1,6 milhões foram canalizados para à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, as únicas profissões jurídicas que têm direito a uma parcela das custas judiciais. Ainda assim, recentemente, este valor atribuído baixou consideravelmente: passou de 3,3 milhões de euros em 2010para os referidos 1,6 milhões. Os advogados ainda receberam, em 2011, 1,3 milhões para o Conselho Geral da Ordem dos Advogados e 1,5 milhões em 2010. Uma parcela distribuída pelo Ministério da Justiça especificamente para ser usada na formação dos estagiários. Nos últimos quatro anos, esse valor duplicou, já que, em 2007, a Ordem recebia apenas 773 mil euros.
Já os juizes e os procuradores do Ministério Público estão isentos do pagamento de custas judiciais, desde que sejam parte num processo por via do exercício das suas funções, tornando-se assim a única profissão jurídica com essa benesse.
Se um juiz estiver acusado de maus tratos conjugais, não terá isenção de pagamento de taxas de justiça, mas se for acusado de denegação de justiça (ver texto principal) beneficiará dessa exceção, já que terá sido acusado devido a um ato praticado enquanto juiz. Os oficiais de justiça já estiveram isentos, mas atualmente não. “É muito injusto porque há situações resultantes dos processos disciplinares que deveriam ter isenção”, explica Carlos Almeida, do Sindicato dos Oficiais de Justiça.
NÚMEROS
TAXAS DE JUSTIÇA
No ano de 2011 foram pagos 221 milhões de euros em custas judiciais, 145 milhões só em taxas de justiça, mais um milhão do que no ano anterior e mais 47 milhões do que em 2005.
ORDEM DOS ADVOGADOS
Ministério da Justiça entregou 1,3 milhões de euros à OA. Este valor é usado para a formação de estagiários. A OA recebeu ainda 1,6 milhões para a caixa de previdência de advogados e solicitadores.
Diário Notícias | Segunda, 15 Julho 2013

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