terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O admirável mundo novo: na senda da irrelevância da ordem jurídica (II)

Processos empilhadosPor António Cluny, publicado em 22 Jan 2013


A erosão do “princípio da legalidade” conduzirá, por isso, a sociedade a uma situação anterior às Luzes
1. Um dos problemas que a erosão do valor e da força ordenadora da ordem jurídica provocam é a deriva autoritária que permite.
Fora de uma ordem jurídica estável, isto é, fundada em princípios gerais de direito e social e democraticamente validada, desaparecem limites e referências na condução da política, da vida social, da economia, das relações familiares, das próprias condutas pessoais. Manda ilimitadamente o mais forte.
Não havendo lei, ou podendo quem manda criá-la ex novo e para além dos limites da Constituição, “legal ou ilegal” é sempre aquilo que alguém que pode quiser que seja. Os regimes ditatoriais sabem-no bem.
A erosão do princípio da legalidade conduzirá por isso a sociedade a uma situação anterior às Luzes ou, pior ainda, a uma ordem (nova) emanada da vontade divinizada de um chefe, que ontem podia ser Hitler, mas hoje pode ser, mais obscuramente, uma qualquer e indefinida entidade denominada mercados.
2. Hoje, em função de um pragmatismo despojado já de qualquer sentido político aparente, que não aquele com que o motu continuo de uma economia à deriva impõe aos povos, estamos desamparadamente à mercê dos agentes geradores de uma lei instantânea, cujos princípios (re)fundadores se desconhecem e que por isso nunca se fixa.
Consequentemente, nenhuma conduta humana pode, com a mínima certeza, ser por ela verdadeiramente orientada: o cidadão e o comércio dos homens ficam portanto reféns de uma insegurança querida e promovida simultaneamente a instrumento e objectivo de governação política e jurídica.
Huxley, Orwell e Philip K. Dick nem ousaram ficcionar tanto e tão bem o horror do mundo novo.
3. A lógica que antes enunciei não se materializa apenas nos centros que produzem instrumentos normativos abstractos (leis); incorpora-se e reproduz-se também nalguma prática judicial.
Daí que, em alguns casos e por força dos populismos reinantes, tenda a converter-se até em corrente jurisprudencial ou, mais acriticamente, em pura praxis processual, pois assumida cegamente por alguns dos seus agentes.
O objectivo, mais do que a valoração isenta das condutas, tornou-se por isso a justificação de certas normas e intervenções judiciais e, como referia Teubner, a escolha prévia da regra aplicável acontece e resulta apenas – e depois – de uma opção por uma solução politicamente correcta do caso concreto.
Acusar um indivíduo da violação de uma norma que não está seguramente identificada, obrigá-lo a defender-se da imputação de um crime, que só a opção posterior por uma solução jurídica alheia à inventiva do agente permite conceber como tal, pode, neste contexto, tornar-se uma extraordinária arma de contenção e de medo.
Contava-se que uma das técnicas do anterior regime para controlar os funcionários consistia precisamente no estabelecimento de normas de responsabilização tão difusas e abrangentes, que podiam abarcar (se se quisesse) toda uma cadeia de ordenadores a executores, que, claro está, viviam atemorizados (e obedientes) pela perspectiva de poderem, arbitrariamente, ser acusados de uma qualquer e inimaginada irregularidade.
Um dos problemas do nosso sistema jurídico e judicial é a dificuldade que, a certos níveis, alguns dos seus agentes têm, ainda hoje, em pensar politicamente a sua função e analisar criticamente o respectivo exercício e suas consequências.
Provocar esta incómoda reflexão nos juristas é hoje, de novo, uma das preocupações do movimento associativo judiciário europeu e democrático.
Jurista e presidente da MEDEL