sábado, 2 de fevereiro de 2013

Praga bíblica


Os serviços públicos ou sociais subsidiados deixam de o ser porque o encargo da despesa é grande mas esta é canalizada para sustentar instituições bancárias endividadas e em perigo de rutura por força da especulação de risco em que se envolveram.
Por: Noronha Nascimento, Presidente do STJ
Dez bancos dos EUA aceitaram pagar uma multa multimilionária às instituições reguladoras por força dos incontáveis despejos resultantes da crise do imobiliário que provocaram, subtraindo-se a uma investigação aprofundada às práticas abusivas.
Como a sociedade civil americana é vigorosa, estão já em marcha associações de lesados que tencionam levar a tribunal as demandas necessárias para questionar aquelas práticas. Aqui chegados, estamos no fim da linha de um futuro previsível: os tribunais como recurso derradeiro dos que sentem que foram esquartejados nos seus direitos. As sociedades ocidentais estão estruturadas sobre dois institutos fundadores: propriedade privada e liberdade de empresa.
A par dos direitos fundamentais, há princípios conformadores de toda a arquitetura jurídica global. Uma crise é uma perplexidade. Daí que, para reler esta crise, seja bom recordar a síntese que Tony Judt escreveu: no Ocidente "os anos de 1989 a 2009 foram comidos pelos gafanhotos".
Correio da Manhã

Legislador avisa. Menezes e Seara podem perder autárquicas na justiça

Paulo Rangel afirma que o objectivo dos deputados que elaboraram a lei de limitação de mandatos dos autarcas era criar um impedimento geral, e não apenas na câmara onde já foram cumpridos três mandatos.

Renascença - 02-02-2013 1:42 por Marina Pimente
Os tribunais poderão tirar os mandatos de Fernando Seara e Luís Filipe Menezes nas câmaras de Lisboa e Porto, respectivamente, avisa o social-democrata Paulo Rangel em declarações ao programa “Em Nome da Lei” da Renascença.
Em causa está o facto de os dois candidatos do PSD às principais autarquias do país terem já cumprido três mandatos noutras câmaras e de voltarem a concorrer nas eleições marcadas para Outubro deste ano.
Paulo Rangel, que foi um dos negociadores da lei da limitação de mandatos dos autarcas, defende que, embora o diploma não o diga expressamente, o objectivo do legislador era impor uma limitação geral de três mandatos.

O eurodeputado alerta que essa pode muito bem ser a interpretação dos tribunais, se vierem a ser concretizadas as ameaças de impugnação já feitas: “Acho que isso é um risco que pode acontecer e não só eu. Até algumas pessoas que vão ser candidatas a outras autarquias, ouvi eu em conselho nacional do PSD pedirem por tudo, que é aquilo que eu peço”.
“Uma coisa é a minha concepção política, a concepção jurídica eu acho que aqui há dúvidas. O que eu defendo é que haja um esclarecimento, ou para um lado ou para o outro”, sublinha.
Passos Coelho foi alertado para o risco de serem chumbadas em tribunal as recandidaturas de autarcas que já atingiram o limite de mandatos noutras câmaras. Paulo Rangel diz que o líder do seu partido deveria ter seguido o exemplo do líder do PS, António José Seguro, que não permite candidaturas nessas circunstâncias.
Como não o fez, resta-lhe fazer uma rectificação à lei se quiser evitar que a questão seja resolvida pelos tribunais, refere, "apesar de politicamente achar que é uma má solução". 
A Lei da limitação de mandatos pode “contaminar todo o debate” autárquico, adverte Paulo Rangel, se não houver uma clarificação da lei.
O eurodeputado insiste que a ideia do legislador era criar um impedimento geral e não apenas na autarquia onde já foram cumpridos três mandatos. O eurodeputado social-democrata defende que, sobretudo nas grandes cidade, é evidente que assim como os autarcas mudam para a Câmara ao lado, também as clientelas se deslocam.
As redes clientelares não têm fronteiras,  defende também Manuel Meirinho no programa “Em Nome da Lei” da Renascença.
O politólogo diz que é real o perigo dos objectivos, de combate à corrupção e ao caciquismo, da lei da limitação de mandatos ficarem na prática completamente desvirtuados, sobretudo em autarquias vizinhas.
Este é um excerto do programa “Em Nome da Lei”, que é transmitido este sábado, depois do meio-dia, na antena da Renascença. O debate é moderado pela jornalista Marina Pimentel.

Dois tempos: o dos de cima e o dos de baixo

JOSÉ PACHECO PEREIRA 

PÚBLICO - 02/02/2013 - 00:00
É verdade que a "vida custa a todos", mas por cima custa bastante menos. Os dilemas são soft, em baixo são hard
Correm paralelos dois tempos no Portugal da crise: um corre em cima e é marcado essencialmente pelos de cima; outro corre em baixo e é sofrido pelos de baixo. Não comunicam entre si, embora se relacionem pela acção de uns, e pelas consequências em outros. O drama da nossa democracia em tempos desta crise encontra-se nessa incomunicabilidade que os distancia irremediavelmente um do outro, criando uma situação disfuncional e explosiva. Quem não entende que isto se está a passar e a agravar-se bem pode prevenir-se. É que o tempo não corre da mesma maneira em cima e em baixo.
O tempo dos de cima é resultado de uma interacção complexa entre o tempo político-partidário, o tempo político-institucional, o tempo da economia, e o tempo mediático. No seu conjunto geram uma corda entretecida de fios comuns, que se desenvolve coerentemente entre si. Este fio temporal, insisto, desenrola-se à margem da percepção das pessoas comuns, cujo tempo é muito distinto.
O tempo político-institucional é marcado pelas instituições e procedimentos da democracia. É um tempo relativamente rígido - define duração de mandatos, datas de eleições, competências de órgãos, poderes e atribuições. Inclui, no entanto, também factores de ruptura e instabilidade. Crises de governação, geradas por coligações imperfeitas e de má vontade, decisões de tribunais e poderes presidenciais podem dissolver órgãos eleitos e definir alterações do tempo institucional. Em Portugal, apesar da relativa estabilidade formal das instituições, já houve várias rupturas recentes, como seja a dupla dissolução da Assembleia da República com Santana Lopes em 2005 e com Sócrates em 2011. Apesar disso, embora haja factores de instabilidade na actual situação, elas não são de molde a que se possa prever com certeza qualquer ruptura a curto prazo.
O tempo económico é por regra geral lento, e apesar de ter alguma autonomia em relação ao tempo político, é em tempos de crise muito sensível a este. No entanto, é mais errático do que se pensa e os seus efeitos não se manifestam todos no mesmo sentido, nem nas empresas, nem na sociedade "económica", nem nas pessoas. Não actua de forma comum: pode beneficiar, por exemplo, o sector financeiro e ser devastador para as empresas, pode melhorar alguns números macroeconómicos e ser irrelevante para a vida concreta das pessoas. Pode ser, e é, como sistema muito complexo, em grande parte imprevisível. Só os economistas-políticos, neoliberais ou marxistas, é aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação simples entre medidas económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do político orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas, estão por isso sempre a ter "surpresas".
O tempo mediático é na realidade o espelho de todos os outros, em particular do tempo político-partidário, e molda-o a ciclos que lhe são próprios. A hegemonia da narrativa comunicacional sobre a narrativa política faz com que as duas se desenvolvam do mesmo modo e ao mesmo ritmo. Muito pouca coisa que aí se passa - arranques, travagens, acelerações, mudanças do positivo para o negativo, ciclos de sucesso e falhanço - tem alguma coisa a ver com o tempo dos de baixo.
Veja-se por exemplo, o ciclo da novidade, mecanismo fundamental da comunicação social, em que o que aparece como novo, mesmo que seja o que está esquecido há poucos meses, pela curta duração da memória comunicacional, tem um valor de per se, mesmo que objectivamente não tenha nenhum significado. A este ciclo de procura da eterna novidade está associado um outro ciclo de dualidades, a mais importante sendo a da euforia-depressão, ou sucesso-falhanço, positividade-negatividade. A procura da novidade leva a que haja surtos de ascensão e queda previsíveis. Passos Coelho já esteve na alta, agora está em baixo, na semana seguinte está em alto, Gaspar a mesma coisa, Álvaro Santos Pereira parece um ioiô de incompetência numa semana e noutra semana motivo de expectativas ilimitadas.
De um modo geral, Governo e oposição alteram as graças da comunicação, fenómeno exagerado pela amplificação do sistema político-partidário desses ciclos alternantes. A ida aos mercados foi acolhida com muito entusiasmo acrítico da comunicação social, beneficiando aqui uma operação de propaganda governamental, porque permitia a "novidade": o Governo estava a acertar, após meses a falhar. Do mesmo modo, a oposição beneficia desse corso-ricorso, com uma ampliação do efeito de qualquer pedra na engrenagem de uma acção governamental tida como vantajosa. É um pouco simples, mas eficaz. As empresas de comunicação e imagem, a miríade de assessores nos gabinetes governamentais, usam estes mecanismos para obter efeitos positivos ou minimizar desastres políticos tidos como "erros de comunicação".
Nesta narrativa comunicacional, que os partidos políticos levam para o Parlamento em "intervenções políticas" que são um reflexo da imprensa do dia, nós assistimos à criação de um tempo político virtual. Todos estes tempos de cima podem ser sintetizados na sua força virtual, e na sua fraqueza real, pelas afirmações sobre a luz ao fundo do túnel. Aqui, economistas, banqueiros, jornalistas, comentadores, políticos, empresários entretêm-se à compita em dizer que saímos da crise em finais de 2013 (já foi em 2010, 2011, 2012, 2013, logo no início), ou em 2014, ou depois de 2015, ou depois de uma década. Talvez em nenhum tipo de afirmações, predições, adivinhações, desejos, seja mais nítido a separação dos tempos entre os de cima e os de baixo, como aqui.
Quem é o "nós"? Não é certamente os de baixo, os que estão na mó de baixo, os que estão a descer, os que estão a empobrecer, os que já são pobres. Não adianta fazer muitas precisões sociológicas, basta dizer que são a esmagadora maioria dos portugueses. "Nós", o povo português.
O tempo destes é de natureza muito diferente do tempo dos de cima. É dramático, em primeiro lugar. Os de cima podem dizer "atravessamos tempos difíceis", mas eles não são o paradigma desses tempos difíceis. Podem estar a sofrer algumas dificuldades, mas a sua margem de manobra é infinitamente maior. É verdade que a "vida custa a todos", mas por cima custa bastante menos. Os dilemas sãosoft, em baixo são hard.
Em cima pode haver dificuldades, em baixo há desespero. É por isso que não significa rigorosamente nada para os de baixo, que depois de baterem no fundo todos os números, da economia, do desemprego, do PIB, haja uma pequena recuperação. Tudo o que sobe tem de descer e tudo o que desce a uma dada altura deixa de descer. Mas o que significa isso para o tempo de um desempregado de "longa duração"? Vai ter emprego em 2015? Vai poder dar uma educação superior aos seus filhos como podia dar em 2007? Vai poder pagar a renda de casa? O que significa isso a quem perdeu a casa para o banco em 2011, 2012, 2013, vai poder recuperá-la em 2014, ou 2015, mesmo que se saia da recessão? Quem viu falir a sua pequena empresa, de que vivia o "patrão" e dois ou três empregados, no comércio ou na restauração, vai poder reabri-la depois da ida protegida pelo BCE aos mercados? Quem deixou de poder pagar ao fisco e tem uma execução sobre os seus escassos bens, sobre o seu salário, vai poder de repente ganhar mais para pagar os seus impostos altíssimos?
O tempo para estes portugueses não tem folga nenhuma, nem ciclos de novidade, nem surtos de depressão e euforia. A sua vida centra-se no fim do mês até à primeira conta que não pode pagar. A sua vida não conhece "novidades" mediáticas, nem luzes ao fundo do túnel, nem que seja para daqui a um ano. Se aguentar significa continuar vivo, como na frase vil de um banqueiro, que trata os sem-abrigo como exemplo aceitável, muitos vão continuar vivos. Aleluia! Outros vão morrer na tristeza e no desespero e outros pedirão à morte que venha com pressa. Mas o tempo de todos é imediato, doloroso, sem futuro, para eles não tem qualquer significado nada que não mude a sua condição a muito curto prazo.
A profunda doença da nossa democracia, em Portugal de 2013, é que os que vivem no tempo dos de cima nada têm a dizer aos que vivem no tempo dos de baixo. Os políticos, os partidos, que em democracia só ganham sentido quando exprimem os interesses, as necessidades, as dificuldades de todos, insisto de todos e no presente, falham esse dever.
É possível? Claro que é possível. É só saber olhar, saber ver, saber falar com, e saber decidir em função dos interesses de muitos. É fazer as escolhas certas e não se distrair. É olhar para o salário do fim do mês, para a vida no desemprego, para o que diz, com inteira clareza, a Cáritas, em vez de estar obcecado com o jornal do dia seguinte. O maior risco da nossa democracia é que quem devia falar está calado, e que quem fala devia estar calado.
Historiador. Escreve ao sábado