segunda-feira, 20 de maio de 2013

Estado retirou 733 euros a cada reformado


Austeridade. Os cofres públicos já foram buscar 2,566 mil milhões de euros, nos últimos três anos, aos 3,5 milhões de reformados portugueses, entre cortes, congelamentos e impostos
ERIKA NUNES
Mais de um terço da população portuguesa está reformada e revoltada. Os movimentos de reformados, pensionistas e aposentados nascem, crescem e organizam-se para tentar recuperar alguns dos direitos que têm visto ser, gradualmente, retirados.
De acordo com o economista Eugénio Rosa, nos últimos três anos, com os cortes aos reformados e pensionistas o Estado já foi buscar 2,566 mil milhões de euros. Ou seja, cada reformado perdeu 733 euros.
Há 3,5 milhões de portugueses reformados ou pensionistas, dos quais dois milhões têm pensões baixas – abaixo do salário mínimo nacional – mas que não têm sido poupados à austeridade.
Além dos cortes em vigor para todos os portugueses, há ainda cortes específicos para este grupo que se sente “atacado pelas medidas de austeridade” e promete “não desistir dos protestos enquanto não for cumprida a Constituição da República”, como refere Casimira Menezes, presidente da Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos (mais conhecida por MURPI).
Rosário Gama, professora reformada e fundadora da associação APRe!, acrescenta que representa um grupo que “tem sofrido os mesmos cortes que o resto da população e ainda mais alguns exclusivos”, o que lhes aumenta o “sentimento de profunda injustiça, num momento que estão a ser “o subsídio de desemprego dos filhos e netos desempregados, substituindo o Estado social”.
“A Constituição diz que o Estado deve assegurar meios para a autonomia financeira dos reformados”, recorda Casimiro Menezes, médico reformado, desiludido por “o que esteve contratualizado com o Estado ao longo de 36 anos de descontos não estar a ser cumprido agora”.
E o que sucede com os reformados da Caixa Geral de Aposentações (CGA), que o Governo quer agora fazer convergir com os reformados da Segurança Social, mediante o corte, em média, de 10% das reformas. “O valor da reforma da CGA está contratualizado com o Estado, durante toda a vida contributiva esteve contratualizado.
Ora, fazerem agora descontos é querer alterar um contrato no passado, criar uma lei com efeitos retroativos. Não pode ser”, reclama Rosário Gama, que promete interpor uma ação contra o Estado se a medida avançar em definitivo.
Os cortes nas pensões e nas reformas já começou em 2011: mais 1% de IRS nos escalões mais baixos, mais 1,5% de IRS nos escalões mais altos, depois foi-lhes retirado um ou dois subsídios, consoante o rendimento-que o Tribunal Constitucional declarou ilegal, mas “permitiu que vigorasse na mesma”, acrescenta Casimiro Menezes. Agora ainda têm de pagar a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, além do fator de sustentabilidade do sistema.
Com a lei que permitiu aumentar as rendas de casas, com o aumento do IMI, o fim dos passes para reformados nos transportes públicos, o aumento das taxas moderadoras, dos exames médicos, dos medicamentos, da energia elétrica, do gás e do IVA sobre bens alimentares, Rosário Gama confessa que não faz “ideia do poder de compra perdido em três anos, só que já não se consegue comprar nada do que podia e muitos ainda têm de sustentar filhos e netos”.
Entre o que mais apoquenta os reformados, revela o presidente da MURPI, “é o acesso à saúde, desde a incapacidade económica para custear medicamentos e tratamentos, às condições de atendimento cada vez mais precárias nos hospitais e centros de saúde, à medida que os cortes no SNS avançam”. A “qualidade de vida que trabalhámos para ter foi-nos retirada”, conclui o médico.
Diário Notícias, 20 Maio 2013

Morte de menina por julgar porque juízes não se entendem


Dois médicos do Hospital Pediátrico de Coimbra estão há mais de nove anos para serem julgados por homicídio negligente. Tudo por causa de dúvidas entre juízes sobre a comarca competente para analisar o processo.
O caso, que culminou com a morte de uma menina de Tábua, em março de 2004, começou a ser julgado no Tribunal de Penacova, tendo chegado quase às alegações finais, mas após uma violenta troca de palavras entre a juíza e o advogado Rodrigo Santiago (defensor de um dos arguidos), a magistrada apresentou queixa-crime contra o causídico e invocou escusa.
O juiz substituto também invocou escusa e o terceiro a assumir o julgamento, que já contava com quase uma dezena de sessões realizadas e cerca de 30 testemunhas ouvidas, entendeu que a comarca competente era a de Coimbra, pelo que remeteu o processo para a Relação. Esta discordou e ordenou que o julgamento decorresse em Penacova e começasse do zero, anulando os testemunhos prestados, que terão de ser repetidos. O (re)início ainda não está agendado.
Ana Rita Almeida Santos, de 10 anos, sentiu-se mal no dia 15 de março de 2004 e foi ao centro de saúde de Tábua, tendo-lhe sido diagnosticada uma gastroenterite. No dia seguinte, os sintomas agravaram-se e a médica do mesmo centro de saúde, suspeitando de apendicite aguda, reencaminhou a doente para o Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC), dando nota aos colegas da gravidade da situação. Um cirurgião e um pediatra deram-lhe alta sem realizar exame complementar de diagnóstico. Um deles terá garantido à mãe de Ana Rita que esta não sofria de apendicite aguda.
A menina foi para casa e não dormiu a noite toda. No dia 17, foi a outro médico, em Arganil, que confirmou “sinais característicos de apendicite” e ordenou que Ana Rita fosse de imediato para o HPC. Perto de Penacova, Ana perdeu os sentidos e foi transportada para o centro de saúde local, onde declararam o óbito. A autópsia confirmou que a causa da morte foi “apendicite aguda perfurada complicada de peritonite”. O Ministério Público acusa os dois médicos do HPC de coautoria do crime de homicídio negligente. Os pais da menor exigem mais de cem mil euros de indemnização. O crime pode prescrever em 2014.
Ao JN, o bastonário da Ordem dos Advogados disse que “a questão da competência territorial já estava decidida quando a juíza deu início ao julgamento”. “Não percebo como é que outro magistrado desfaz na colega”, afirmou Marinho Pinto. O bastonário considera que “esta atitude favorece os arguidos” e “é o exemplo do mau funcionamento da justiça”. “Chutar para canto é o grande problema de muitos magistrados”, diz.
JN Online, 20 Maio 2013

Casos de impostos parados nos tribunais valem 6 mil milhões


Estado e contribuintes disputam 6,25 mil milhões em impostos nos tribunais
Estatísticas. Apesar da constituição de equipas especiais de juizes para os processos tributários, não há forma . de fazer baixar as pendências. Agressividade do fisco leva cidadãos a reclamar cada vez mais nos tribunais
CARLOS RODRIGUES LIMA
Ao mesmo tempo que os tribunais administrativos e fiscais (TAF) resolviam, com sentenças transitadas em julgado, 433 processos tributários, com valor superior a um milhão de euros, outros 746 casos entravam pelas portas dos TAF. Conclusão: atualmente, segundo o último relatório do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), o Estado e os contribuintes disputam 6,25 mil milhões de euros em processos apenas relacionados com impostos.
Após a chegada da troika a Portugal, que ocorreu em maio de 2011, foi acordada a constituição de equipas especiais de juizes apenas vocacionadas para a tramitação dos processos fiscais com valor superior a um milhão de euros. Segundo o CSTAF, que fez o balanço do último trimestre de 2012, quatro juizes foram destacados para a equipa de Lisboa e três para o Porto, as comarcas cujo valores em causa nos casos são mais elevados (ver quadro nesta página). A “conclusão global” do órgão máximo da jurisdição administrativa e fiscal é que “entre 17 de Maio de 2011 e30 de Dezembro de 2012 verificou-se uma redução liquida da pendência em 24% (de 1359 para 1010 processos)”. Só que esta redução foi mais significativa na primeira instância. O que quer dizer que, muito provavelmente, Os processos seguiram para recurso nos Tribunais Centrais Administrativos (Lisboa e Porto) e para o Supremo Tribunal Administrativo. Ainda assim, houve 433 que transitaram em julgado: “230 nos tribunais de 1ª instância, 130 nos Tribunais Centrais Administrativos e 73 no STA, ascendendo o respectivo valor processual a cerca de 1.69 mil milhões de euros”, segundo o relatório do CSTAF, que não identifica quem ganhou os processos: se o Estado ou os contribuintes. A enchente de processos entrados terá a ver, segundo um juiz contactado ontem pelo DN, com a agressividade do fisco nas liquidações dos impostos: “Atualmente, a regra é: paga e depois reclama. Ora, muitos contribuintes, pessoas e empresas, que não concordam com as liquidações feitas pelas finanças recorrem aos tribunais.”
6,25 mil milhões em litígio
Contas feitas, no final de 2012 ficaram pendentes “1010 processos, dos quais 790 nos tribunais de primeira instância, 176 nos Tribunais Centrais Administrativos e 44 no STA, ascendendo o respectivo valor processual a cerca de 6,25 mil milhões de euros”, só em processos com valor superior a um milhão de euros, lê-se no relatório do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Mais 3 mil milhões no cível
Mas não é só na área tributária que o Estado procura recuperar dinheiro. Só nos tribunais cíveis da área da Procuradoria Distrital de Lisboa, o Estado disputa 3,4 mil milhões de euros. Estes podem estar repartidos em processos de pedido de indemnizações, reclamação de créditos ou execuções de dívidas.
Já no Tribunal do Comércio, o Ministério Público, em representação do Estado, reclamou 219 milhões de euros. Este montante está, sobretudo, relacionado com processos de falência. Porém, um juiz ouvido pelo DN referiu que, dificilmente, o Estado conseguirá arrecadar dinheiro nestes casos. Já que as empresas em falência não possuem qualquer tipo de património. O mesmo se passa com os trabalhadores. Em 2012, o MP, em representação de 600 trabalhadores, reclamou sete milhões de euros em créditos em vários casos de falências de empresas.
EQUIPAS
Conselho aposta nos ‘superjuízes’
A experiência deveria só vigorar no ano de 2012. Mas devido à necessidade de finalizar os processos tributários com valor superior a um milhão de euros, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) decidiu, em dezembro do ano passado, prorrogar por mais um ano a constituição de equipas especiais de juizes para aquele tipo de processos tributários. Segundo a deliberação do CSTAF, foi “assinalável” o grau de eficiência das equipas especiais. Que só não foi maior porque novos processos deram entrada e não lhes foram distribuídos. O organismo da Justiça ordenou, por isso, a redistribuição destes processos.
Diário Notícias, 20 Maio 2013

Uma Europa da Justiça

JOSÉ MOURAZ LOPES E FILIPE CÉSAR MARQUES 

Público - 20/05/2013 - 00:00

É hoje um facto incontestado que nos tempos sombrios que pairam sobre a Europa a solidez do direito europeu e o papel que a jurisprudência do tribunal da União tem vindo a ter na defesa dos direitos dos cidadãos europeus são ainda a última esperança para a construção de uma Europa solidária e assente em princípios comuns. Veja-se, por exemplo, a decisão recente do tribunal da União que "validou" a jurisprudência dos tribunais espanhóis que impediram a aplicação de leis que levavam ao despejo imediato de cidadãos com dívidas hipotecárias.
É por isso que a aplicação de um mesmo direito em todos os Estados, por juízes independentes, cumprindo as leis nacionais, os tratados europeus e a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, assume, nos tempos de crise global, um papel fundamental.
A existência de normas mínimas comuns em todos os Estados que garantam a independência dos juízes e a autonomia do Ministério Publico é uma garantia dos cidadãos europeus. Só assim terão a certeza de ter, em todo o espaço da União, tribunais independentes que apliquem um direito que já é hoje comum e efectivamente igual para todos. Não basta a proclamação formal do princípio da independência do poder judicial - é necessário que existam regras comuns que a tornem efetiva.
Coincidindo com o aniversário do assassinato do juiz italiano Giovanni Falcone, a MEDEL (Magistrados Europeus para a Democracia e as Liberdades) celebra no próximo dia 23 de Maio, em toda a Europa, o Dia da Independência da Justiça.
Num tempo em que as dúvidas sobre a credibilidade de um discurso económico são cada vez maiores, é tempo de reconhecer que o direito e a justiça são ainda a esperança de que há uma Europa de direitos para todos os cidadãos que vale a pena defender.
É esse o desafio que propomos aos cidadãos europeus.
Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP); representante da ASJP junto da MEDEL

Linguagem de magistrados

Público - 20/05/2013 - 00:00

"Grande parte da ineficiência do sistema resulta de gramáticas próprias"
Os profissionais estão preparados para a revolução do mapa judiciário?
Por exemplo, o Ministério Público, em conjunto com as autarquias onde fecham tribunais, podia continuar a oferecer apoio jurídico às populações. Mantendo um dia ou dois de atendimento ao público. Os magistrados deslocavam-se, por exemplo, a uma sala da autarquia para receber o cidadão. E davam uma dinâmica nova a este atendimento.
Esse serviço é pouco conhecido do grande público?
Na província as pessoas acorriam com grande regularidade ao atendimento. Há assuntos que se resolvem ali ou se encaminham para a entidade competente. Esse atendimento tem a grande virtualidade de impedir que se acumulem coisas em tribunal. E é fundamental a ligação entre magistrado e cidadão.
Isso leva-nos ao problema de preparação dos magistrados...
Quando nasceu o Centro de Estudos Judiciários tinha a função imediata de criar o maior número de magistrados num mínimo de tempo. E conseguiu-o. O problema está em saber se entretanto evoluiu. Defendo o reforço de um tronco comum entre as carreiras judiciais. Um dos problemas da separação das carreiras é que a formação em laboratório afasta as pessoas. Criam-se culturas próprias e desenvolvem-se gramáticas e linguagens que não se reconhecem umas nas outras. Grande parte da ineficiência do sistema resulta do desenvolvimento destas gramáticas.
Isso transporta-nos para discursos como o do bastonário dos Advogados...
Não quero falar do senhor bastonário. De facto, tem uma técnica muito própria que posso retratar com um poema do António Aleixo: "Para a mentira ser fecunda e atingir profundidade, deve trazer à mistura qualquer coisa de verdade". Não quero dizer que minta. Mas pega num episódio que muitas vezes é verdadeiro e a partir daí generaliza uma situação que já não o é. Acaba por denegrir de tal maneira o sistema judiciário que denigre a própria advocacia.

"Há quem queira interpretar a nossa Constituição à luz da troika"

Público - MARIANA OLIVEIRA TEXTO DANIEL ROCHA FOTOGRAFIA

20/05/2013 - 00:00
António Cluny defende que a justiça portuguesa aguenta melhor a comparação com outros países da União Europeia do que se possa pensar.
António Cluny, 57 anos, é procurador-geral adjunto no Tribunal de Contas e há dois anos preside à associação Magistrados Europeus para a Democracia e as Liberdades (MEDEL), um organismo fundado em 1985 e que actualmente reúne cerca de 20 associações profissionais de juízes e procuradores. Esta quinta-feira, dia em que se contabilizam 21 anos sobre a morte do juiz italiano Giovanni Falcone, assassinado pelo seu papel em processos ligados à mafia siciliana, a MEDEL discute em Bruxelas a necessidade da União Europeia (UE) definir regras claras que garantam a independência do poder judicial. Apesar de quase todas as constituições europeia preverem essas garantias, a prática, diz Cluny, mostra que países como a Alemanha e a França têm modelos que não garantem a independência do poder judicial face aos respectivos governos.
Actualmente quais são as principais preocupações da MEDEL?
Lutar por defender a nível europeu princípios que permitam que o poder judicial se desenvolva de forma independente face aos poderes públicos e aos poderes fácticos, como o poder económico e o mediático. Quase todas as constituições dos países europeus falam na independência do poder judicial e algumas falam na independência do juiz. Umas falam da autonomia do Ministério Público, outras não. Em termos teóricos, todas consagram regras mínimas em termos de independência. Na prática o funcionamento dos diversos sistemas não é todo igual.
Alguns muito diferentes, como na Alemanha?
A Alemanha tem uma tradição muito governamentalizada. Nem o Ministério Público é autónomo, nem há um órgão independente de gestão da magistratura judicial. Não gostamos de falar em autogoverno porque parece que defendemos que só os magistrados se devem governar a si mesmos. Não defendemos isso, mas um governo próprio, específico da magistratura. Com pessoas vindas da sociedade política, da sociedade civil, que ajudem a governar a magistratura de uma forma distinta do poder executivo, do poder parlamentar e dos poderes fácticos. De maneira que não haja interferências e que exercam um controlo efectivo sobre as magistraturas.
Mas a realidade é bem diferente...
O que nos parece realmente estranho é que enquanto se criaram critérios para aferir a independência do poder judicial, que comportam a existência de conselhos, em países que querem aderir à UE, há países fundadores da União que não seguem esses mesmos critérios.
Por exemplo, a Alemanha.
Embora se garanta a independência constitucional dos juízes, toda a gestão da sua carreira é feita através dos governo dos estados federados e e do estado federal. Não há mecanismos que garantam a independência. O Ministério Público também depende directamente do ministro. Não é um orgão autónomo como é em Portugal, em Itália, na Espanha, na Bélgica...O Conselho da Europa tem vindo a acompanhar a questão da independência do poder judicial com resoluções em que aponta claramente para a necessidade de uma autonomia do Ministério Público. E relativamente à gestão dos juízes para a criação de um conselho superior e para a própria composição desse conselho.
A Alemanha já foi visada numa dessas resoluções.
Foi. E a França está com um problema gravíssimo. O Ministério Público francês é entendido como autoridade judiciária, com poderes processuais penais, sem que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem lhe reconheça essa qualidade, porque ele depende directamente do ministro da Justiça. E isso levou o tribunal europeu a anular decisões. Ora é a altura da Europa reflectir muito claramente sobre a criação de standards mínimos, que se traduzam em mecanismos mínimos que garantam essa independência.
Qual é o objectivo da iniciativa de 23 de Maio?
A ideia surgiu de um conjunto de situações mais graves que a simples detecção destas incongruências. De situações concretas muito complicadas como são os casos da Hungria, da Roménia e da Sérvia.
As crises vireram pôr mais em evidência estes problemas.
Sim, o problema que hoje existe em todo o mundo e na Europa em particular é o desfalecimento das leis democráticas aprovadas pelos parlamento ou dos próprios tratados internacionais em favor do poder fáctico dos grandes grupos económicos. A situação portuguesa é exemplo disso. Temos uma Constituição, temos leis, e há quem queira interpretar a nossa Constituição à luz da realidade troikista. O que o a troika diz terá para muita gente muito mais valor do que a própria Constituição. Isto cria situações de pressão muito grande sobre os órgãos jurisdicionais que têm que julgar situações cada vez mais complexas. Tudo isto se traduz num conjunto de problemas jurídicos, de direitos fundamentais, que é necessário salvaguardar sob pena de cairmos na selva. Há aqui todo um retrocesso civilizacional que se traduz em conflitos que a Justiça tem que regular o melhor possível. E só pode fazê-lo se puder actuar com independência.
Os magistrados estão preparados para estes desafios?
Do ponto de vista técnico, os magistrados e os estudantes de Direito estão hoje muito mais bem preparados do que no meu tempo. A questão pode colocar-se do ponto de vista do tempo que tiveram ou não tiveram para se prepararem enquanto cidadãos. Em termos de vivência social. O ensino universitário e depois no Centro de Estudos Judiciários é de tal maneira absorvente que há o risco de muitos magistrados verem os problemas só através de uma folha de papel A4 ou de um ecrã de um computador. Por vezes em nome da celeridade, da eficácia e da eficiência a redução desse tempo que é necessário ao contacto com o cidadão e com o a realidade envolvente.
Há uns anos exigia-se uma idade mínima para entrar na magistratura. Faz sentido repor a regra?
Isso permitiu que muitos dos melhores candidatos à magistratura acabassem por encontrar colocações, onde se ganha muito melhor. Hoje nos grandes escritórios de advogados, embora só para uma minoria, é fácil encontrar remunerações muito mais apetecíveis.
Mas a magistratura ainda oferece a estabilidade e no início salário-base relativamente alto.
É verdade, mas também é verdade que as grandes sociedades de advogados conseguem oferecer melhores condições remuneratórias que o Estado. E perspectivas de progressão na carreira. As magistraturas estão absolutamente bloqueadas.
O contacto com diferentes problemas da Justiça na Europa dá-lhe uma outra forma de olhar para a realidade portuguesa?
Apesar de todos os defeitos apontados, temos um sistema de conselho superior relativamente equilibrado quer na sua composição, quer nos poderes que têm quer na forma como actuam do ponto de vista disciplinar e na avaliação dos magistrados. Ainda não vi lá fora nenhum sistema que seja tão isento na notação dos magistrados. Nesse aspecto tem sido muitas vezes estudado e até copiado. Mas não basta ter conselhos superiores. Há países onde foram instituídos conselhos superiores, mas em que a própria dinâmica interior desses conselhos ou a própria realidade social desses países acabou por produzir orgãos oligárquicos que passaram a reproduzir a gestão de grupos de interesses, alguns internos. Por isso a nossa preocupação não passa apenas pela independência face aos poderes externos. Em Espanha continua a haver um problema grave com o conselho superior do poder judicial, que é muito partidarizada.
Vê Portugal melhor ou pior depois de ter tido essa experiência da MEDEL?
Do ponto de vista da capacidade de intervenção dos conselhos estamos muito acima da maioria dos países. E temos a felicidade de os próprios magistrados acreditarem, no geral, no sistema que os rege. Não desconfiam dele.
O que temos de pior em comparação com essa realidade?
Não sabemos fazer uma gestão correcta dos serviços. Mas para termos essa cultura por um lado temos de ter confiança no sistema. Temos de melhorar as regras, organizar melhor as procuradorias, especializá-las.